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Estupro no Campus – O que deu errado? Rolling Stone e a anatomia de um erro jornalístico

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Imagem original da matéria sobre o estupro. Arte de John Ritter

Por Andriolli Costa

Em novembro de 2014, a revista Rolling Stone, após meses de apuração, publicou uma grande reportagem sobre estupros dentro do campus da Universidade de Virgínia. Tinha como pedra fundamental o relato de “Jackie”, uma fonte que teve a identidade preservada e que contava uma terrível história. Ainda emocionada, relatava em ricos detalhes como havia sido violentada por sete garotos durante uma festa da fraternidade Phi Kappa Psi. Uma história chocante e emblemática, como a repórter foi pautada para encontrar. Era perfeita para a revista. Pena que era totalmente inventada. Pena que ninguém checou. Confira o texto original (já substituído) no Internet Archive.

A verdade veio a tona pouco tempo depois, quando outros veículos começaram a fazer suas próprias investigações e apontaram inconsistências no caso. Mesmo a repórter que conduziu as entrevistas já não se sentia confiante quanto à sua apuração. Como resposta, a revista procurou a Universidade de Columbia, que produziu um “relato jornalístico sobre uma falha jornalística”. Três pesquisadores analisaram todo o material coletado durante a apuração da repórter Sabrina Rubin Erdely, entrevistaram os profissionais envolvidos e – é claro – fizeram a apuração direito. E produziram este relatório, publicado na íntegra na Rolling Stone neste domingo (05/04).

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Imagem que acompanha o relatório

O relatório
“Registros da revista e entrevistas com os envolvidos mostram que a falha da reportagem ‘Um estupro no Campus’ não ocorreu devido à falta de estrutura. O problema foi de metodologia”, apontam. A repórter foi pautada para encontrar um caso que se encaixasse na narrativa pronta esperada pela revista. “Havia outros casos, mas nenhum tão dramático e chocante”, destaca a repórter. Realmente, nenhum.

Temos então uma narrativa preenchedora de aspas, que se basta no jornalismo declaratório com um mínimo de apuração. A entrevistada, Jackie, menciona pessoas, mas não fornece os seus nomes completos e nem seus contatos. Erdely, a repórter, empaca nesse detalhe. O relatório sugere que qualquer pesquisa no Facebook ou contato com outros alunos da turma poderiam ter ajudado a encontrar estas pessoas.

Ao invés disso, a publicação compra o discurso de Jackie, que faz citações indiretas (de amigos, membros da Pi Kappa Psi e representantes da Universidade). A narrativa incorpora as citações, fazendo crer que a revista ouviu os envolvidos, o que não ocorreu. Columbia chama atenção para a construção textual, que mascara os furos de apuração por meio de uso de pseudônimos ou de puros artifícios de linguagem.

Para não correr o risco de perder a colaboração de uma fonte tão rica, e que ainda manifestava o trauma de uma suposta agressão, a repórter evita confrontar a entrevistada. Uma apuração básica poderia verificar se as pessoas de quem a menina falava sequer existiam, ou faziam parte das instituições acusadas. Mas a história era boa demais. No caso da Universidade e da Fraternidade, a repórter entrou em contato pedindo genericamente um “comentário sobre uma denúncia de abuso”, sem dar detalhes. Recebeu – e usou – uma resposta evasiva padrão.

Orientações

Arte representando a fraternidade Phi Kappa Psi, acusada injustamente pela reportagem como local dos estupros

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O relatório chama a atenção para a necessidade de ouvir as partes envolvidas. Não era apenas questão de justiça, mas uma ferramenta de verificação que pode produzir novos dados. Alerta também para a necessidade de equilibrar a relação com a vítima com a verificação de dados. Os autores pontuam a necessidade da Rolling Stone avaliar o uso de pseudônimos e, por fim, de desenvolver um ambiente mais rígido de controle de erros.

Esta última recomendação se deve ao fato de repórteres e editores, com décadas de experiência, terem optado por desconsiderar todas as instâncias de verificação – até mesmo as sugestões do departamento de apuração. Jackie se recusava a dar o nome de seu paquera, que teria dado início ao estupro, por ainda “ter medo dele”. No entanto, menciona que contou o caso a três amigos logo depois, e que eles a desencorajaram de levar a denúncia para a frente. “A decisão de não entrar em contato com estas pessoas foi feita por editores muito acima de mim”, respondeu Coco McPherson, chefe do departamento de apuração da revista.

Resultados

Jornalismo declaratório, que ignora o princípio de ouvir o outro lado

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O resultado da reportagem fracassada foi, dentre vários outros, o desserviço prestado quanto à importante questão dos abusos sexuais nas Universidades, “divulgando a ideia de que muitas alegações de estupro se tratam de invenção”. O relatório, por sua vez, converteu-se numa peça didática que elucida a importância do jornalismo levado a sério. E para a Rolling Stone, o que significa? Em termos de política editorial, possivelmente nada.

“Os editores sênior da Rolling Stone são unânimes em acreditar que a falha na reportagem não exige nenhum tipo de mudança em seu sistema editorial. ‘Não acredito exatamente que devemos revisar nossos processos, e não penso que precisamos necessariamente instituir novos modos de fazer as coisas”, afirma Will Dana, o editor executivo. “Só precisamos fazer o que sempre fizemos, e nos certificar de não errar novamente”. Uma explicação totalmente tautológica, como pontua Jay Rosen.

O distanciamento é uma ferramenta importante para identificação de um problema, assim como a busca por uma visão externa às rotinas. No entanto, isolar o erro não o corrige. Para isso é preciso saber ouvir os dados, e suas interpretações. Vejamos se era esse o objetivo da revista, ou apenas uma tentativa de gerar um capital simbólico em cima de sua própria falha.

Sobre Andriolli Costa

Andriolli Costa é Jornalista sul-mato-grossense em terras gaúchas. Mitólogo, pesquisador de folclore e cultura popular.

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