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Estupro no Campus – O que deu errado? Rolling Stone e a anatomia de um erro jornalístico

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Imagem original da matéria sobre o estupro. Arte de John Ritter

Por Andriolli Costa

Em novembro de 2014, a revista Rolling Stone, após meses de apuração, publicou uma grande reportagem sobre estupros dentro do campus da Universidade de Virgínia. Tinha como pedra fundamental o relato de “Jackie”, uma fonte que teve a identidade preservada e que contava uma terrível história. Ainda emocionada, relatava em ricos detalhes como havia sido violentada por sete garotos durante uma festa da fraternidade Phi Kappa Psi. Uma história chocante e emblemática, como a repórter foi pautada para encontrar. Era perfeita para a revista. Pena que era totalmente inventada. Pena que ninguém checou. Confira o texto original (já substituído) no Internet Archive.

A verdade veio a tona pouco tempo depois, quando outros veículos começaram a fazer suas próprias investigações e apontaram inconsistências no caso. Mesmo a repórter que conduziu as entrevistas já não se sentia confiante quanto à sua apuração. Como resposta, a revista procurou a Universidade de Columbia, que produziu um “relato jornalístico sobre uma falha jornalística”. Três pesquisadores analisaram todo o material coletado durante a apuração da repórter Sabrina Rubin Erdely, entrevistaram os profissionais envolvidos e – é claro – fizeram a apuração direito. E produziram este relatório, publicado na íntegra na Rolling Stone neste domingo (05/04).

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Imagem que acompanha o relatório

O relatório
“Registros da revista e entrevistas com os envolvidos mostram que a falha da reportagem ‘Um estupro no Campus’ não ocorreu devido à falta de estrutura. O problema foi de metodologia”, apontam. A repórter foi pautada para encontrar um caso que se encaixasse na narrativa pronta esperada pela revista. “Havia outros casos, mas nenhum tão dramático e chocante”, destaca a repórter. Realmente, nenhum.

Temos então uma narrativa preenchedora de aspas, que se basta no jornalismo declaratório com um mínimo de apuração. A entrevistada, Jackie, menciona pessoas, mas não fornece os seus nomes completos e nem seus contatos. Erdely, a repórter, empaca nesse detalhe. O relatório sugere que qualquer pesquisa no Facebook ou contato com outros alunos da turma poderiam ter ajudado a encontrar estas pessoas.

Ao invés disso, a publicação compra o discurso de Jackie, que faz citações indiretas (de amigos, membros da Pi Kappa Psi e representantes da Universidade). A narrativa incorpora as citações, fazendo crer que a revista ouviu os envolvidos, o que não ocorreu. Columbia chama atenção para a construção textual, que mascara os furos de apuração por meio de uso de pseudônimos ou de puros artifícios de linguagem.

Para não correr o risco de perder a colaboração de uma fonte tão rica, e que ainda manifestava o trauma de uma suposta agressão, a repórter evita confrontar a entrevistada. Uma apuração básica poderia verificar se as pessoas de quem a menina falava sequer existiam, ou faziam parte das instituições acusadas. Mas a história era boa demais. No caso da Universidade e da Fraternidade, a repórter entrou em contato pedindo genericamente um “comentário sobre uma denúncia de abuso”, sem dar detalhes. Recebeu – e usou – uma resposta evasiva padrão.

Orientações

Arte representando a fraternidade Phi Kappa Psi, acusada injustamente pela reportagem como local dos estupros

Arte representando a fraternidade Phi Kappa Psi, acusada injustamente pela reportagem como local dos estupros

O relatório chama a atenção para a necessidade de ouvir as partes envolvidas. Não era apenas questão de justiça, mas uma ferramenta de verificação que pode produzir novos dados. Alerta também para a necessidade de equilibrar a relação com a vítima com a verificação de dados. Os autores pontuam a necessidade da Rolling Stone avaliar o uso de pseudônimos e, por fim, de desenvolver um ambiente mais rígido de controle de erros.

Esta última recomendação se deve ao fato de repórteres e editores, com décadas de experiência, terem optado por desconsiderar todas as instâncias de verificação – até mesmo as sugestões do departamento de apuração. Jackie se recusava a dar o nome de seu paquera, que teria dado início ao estupro, por ainda “ter medo dele”. No entanto, menciona que contou o caso a três amigos logo depois, e que eles a desencorajaram de levar a denúncia para a frente. “A decisão de não entrar em contato com estas pessoas foi feita por editores muito acima de mim”, respondeu Coco McPherson, chefe do departamento de apuração da revista.

Resultados

Jornalismo declaratório, que ignora o princípio de ouvir o outro lado

Jornalismo declaratório, que ignora o princípio de ouvir o outro lado

O resultado da reportagem fracassada foi, dentre vários outros, o desserviço prestado quanto à importante questão dos abusos sexuais nas Universidades, “divulgando a ideia de que muitas alegações de estupro se tratam de invenção”. O relatório, por sua vez, converteu-se numa peça didática que elucida a importância do jornalismo levado a sério. E para a Rolling Stone, o que significa? Em termos de política editorial, possivelmente nada.

“Os editores sênior da Rolling Stone são unânimes em acreditar que a falha na reportagem não exige nenhum tipo de mudança em seu sistema editorial. ‘Não acredito exatamente que devemos revisar nossos processos, e não penso que precisamos necessariamente instituir novos modos de fazer as coisas”, afirma Will Dana, o editor executivo. “Só precisamos fazer o que sempre fizemos, e nos certificar de não errar novamente”. Uma explicação totalmente tautológica, como pontua Jay Rosen.

O distanciamento é uma ferramenta importante para identificação de um problema, assim como a busca por uma visão externa às rotinas. No entanto, isolar o erro não o corrige. Para isso é preciso saber ouvir os dados, e suas interpretações. Vejamos se era esse o objetivo da revista, ou apenas uma tentativa de gerar um capital simbólico em cima de sua própria falha.

Desculpe, amigo. O Pantanal não está aqui para servi-lo

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Partida para a focagem de animais (Foto: Andriolli Costa)

Por Andriolli Costa

Eu não tenho certeza quando percebi que ia me incomodar com aquele casal. Já não havia simpatizado com eles, é verdade, mas só no finzinho daquele primeiro dia no hotel fazenda no Pantanal tive noção do que nos esperava. Os gaúchos – como faziam questão de lembrar a todos – chegaram atrasados ao barco para nosso safari fotográfico, ignorando os pedidos do guia para colocar os salva-vidas. Sentaram na proa, de onde era difícil ignorá-los, e começaram o show.

“Olha, um biguá!” – apontamos para o pássaro que se exibia em contra-luz, empoleirado logo na saída de nosso hotel. A esposa, soando desanimada, pediu ao marido que tirasse foto da ave.

– E eu lá quero saber de biguá? Quero bicho grande! Jacaré, sucuri, capivara! – esbravejou.

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Biguá fazendo pose (Foto; Jessika Andras)

Aquele pássaro devia ser algum tipo de batedor. Um mensageiro enviado para sondar se aquele grupo entrava pelas águas do Rio Miranda, em Mato Grosso do Sul, era merecedor do que estava por vir. Não fomos. Depois dessa recepção, foram bem uns 10 minutos sem ver animal algum. Só os ouvíamos. O passeio duraria umas duas horas, mas aquele tempo era demais para a esposa.

– Cadê os “bicho”? – Questionou a esposa, em voz alta. Como ninguém respondeu, ela insistiu, cutucando uma turista sueca que não entendeu nada. Repetindo a pergunta, dessa vez voltou-se diretamente para o guia. Ela cobrava dele uma experiência como a da TV, com revoadas de pássaros por sobre a cabeça. Logo mais, um enorme tuiuiú, com quase três metros de envergadura de asa, passa sobre nós. O marido tenta: – Olha o tuiuiú, amor. Ao que ela responde com um simples “Pffff…”.

Aquele cinismo era tão constante que estragava também nossa estadia no Pantanal. Estávamos todos os demais “fantasiados de turistas”. Chapéus engraçados, câmera no pescoço, repelente espalhado até por cima das roupas. Mais do que isso, estávamos dispostos ao encantamento. Obviamente eu também desejava o hiperbólico. Queria ver sucuris tão grandes que poderiam ser figurantes de filme de Hollywood. Queria um rio tão infestado de jacarés que, ao passar a lanterna sobre suas cabeças, veria tantos pontinhos brilhantes sobre a água escura que teria a impressão de mirar uma cidade. Mas eu sabia que não estava indo ao circo. O Pantanal não estava lá para me entreter ou me servir. Cabia a mim me permitir o maravilhamento.

Em determinado ponto, o guia desligou os motores. Era lá que costumavam avistar as onças pintadas, nos contou. Deveríamos ficar em silêncio, ouvindo a mata, aguardando sinais do felino. Na minha frente, nem bem passados cinco minutos, os gaúchos se remexiam desconfortáveis. Fechei os olhos, em determinado ponto, buscando o envolvimento com aquele ambiente. Impossível. O casal não se continha.

– Que saco ficar aqui sem fazer nada, heim? Se pelo menos a gente pudesse dar uma pescadinha – reclamava o marido. “Nossa… Nem uma capivara! Nem uma cobra! Que absurdo”, questionava a esposa. Não foi surpresa nenhuma, é claro, quando nenhuma onça apareceu. Os gaúchos ficaram revoltados. Faltaram pedir o dinheiro de volta por a natureza não ter colaborado. Como se a onça tivesse obrigação de se mostrar quando se paga R$ 200 pela diária.

Pantanal não é espetáculo, é mistério

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O entardecer pantaneiro (Foto: Jessika Andras)

O primeiro dia não havia nem terminado, mas já não suportávamos mais nossos companheiros de viagem. E a cereja do bolo ainda estava por vir. Durante o jantar, de volta ao hotel, o gaúcho me chama da porta do restaurante. “Ô, gordinho! Ô, gordinho!”. Pediu que eu batesse no apartamento deles pela manhã, para que não perdessem o primeiro passeio do dia. Pego de surpresa, tento ser evasivo. Digo que vou tentar. Ainda incomodado, ele comenta:

– Como foi chato o passeio de hoje, né? Nem uma capivara… – repete a ladainha.

Eu poderia ter dito muita coisa nesse momento. Para meu arrependimento, entretanto, só disse que torcia para ele gostar mais do passeio nos outros dias. Satisfeito, o gaúcho partiu e me deixou com um tormento. Aquilo havia me perturbado. Eu podia ter dito algo, mas me omiti. Fugi da discussão por pura política da boa vizinhança. Não queria ser grosseiro, e devolver patada com patada, mas ainda assim dormi culpado aquela noite.

No dia seguinte acordamos de manhãzinha e fomos direto para o restaurante. Eles já estavam lá (droga…). Mais tarde, nos reunimos no pátio para aguardar o carro para o safári terrestre. O hotel, em si, já era encantador. Carcarás caminhavam pela sombra das árvores, indiferentes aos turistas. Num comedor de pássaros, ao lado do nome do local, um anu preto tentava se enfiar na fila de ração disputada pelos periquitos. Curtíamos o ambiente quando mais uma vez chega o gaúcho, espantando todos os passarinhos com o dedo em riste e se divertindo ao vê-los fugir. Minha namorada suspira e se afasta. Ele vem dar bom dia, e repete a missa da noite anterior.
– Como o passeio de ontem foi chato, né?

Dessa vez, não pude evitar. A resposta eu tinha pronta, havia pensado nela durante toda aquela noite.

“Sabe que eu não achei?”

– Ah é? – Surpreendeu-se.

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O jacaré do Pantanal alcança 2 metros de comprimento (Foto: Andriolli Costa)

“É que a experiência Pantanal não se resume só a ver ‘bicho’, sabe? É claro que é legal, é bacana, mas para quem só quer ver bicho é melhor ir ao zoológico. O Pantanal não é espetáculo, é mistério. Não é só ver, é ouvir, é se conectar. É escutar um mugido na mata e pensar: ‘O que é isso? É um boi?’ Não, é um socó-boi. Um pássaro! Não é fantástico? É boiar de bruços no Rio Paraguai, com a pessoa que se ama, e se sentir parte daquilo. Se você se deixar afetar por esse ambiente, se deixar tocar pelo mistério, vai sentir que é parte de tudo isso. E essa é a magia da experiência Pantanal”.

Mais tarde a Jessika me disse que enquanto eu gastava meu latim, o gaúcho me olhava com uma expressão que poderia ser traduzido como: “Mistério? Nossa, que bichona”. Aquiescendo levemente ele me olha, concorda, e se volta para o francês ao nosso lado.

– Foi chato o passeio de ontem né? Tinha que ter mais jacaré…

Ser incomunicável não é desconhecer o falar, é não saber ouvir

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Pesca esportiva de piranhas (Foto: Jessika Andras)

Além de nós e dos gaúchos, havia um casal de franceses, outro de suecos e no outro dia chegou um de dinamarqueses. Os gaúchos insistiam em puxar assunto com eles, sem qualquer preocupação com o idioma. Nem mesmo o espanhol, que o francês também arranhava. Contentavam-se em repetir devagar e mais alto, a cada vez, e riam sozinhos da incompreensão alheia. Faltou jacaré, né? Ja-ca-ré! – e dava risada.

Mas pior do que a incapacidade de se comunicar em outro idioma, é a de não conseguir entender aqueles que falam a mesma língua que a sua. Naquela janta, comemos frango. Os gaúchos, mais uma vez, se mostraram indignados. Durante o passeio do dia, ele incomodava o guia e os turistas:

– Eu não viajei 2 mil quilômetros, lá do Rio Grande do Sul, para comer galinha! Tanto peixe nesse rio… eu quero pacu!

O guia, pantaneiro de nascença, criado nas fazendas do Passo do Lontra, bem que tentou explicar. Era época de piracema, não se podia pescar e era difícil arranjar pescado nesse período. Absurdo, bradou o gaúcho. Deveria era haver mais fiscalização, mas não impedir a pesca completamente. Durante toda a volta para o hotel, o guia explicou sobre a extensão da área, sobre a dificuldade do trabalho da polícia ambiental e todo o contexto da região. Inútil.

Na chegada, havia bife para o almoço. O casal reclamou com o garçom, falou mais uma vez dos 2 mil quilômetros, e tudo mais. Chamou a gerente. Estávamos servindo o sorvete da sobremesa, e ouvimos mais uma vez a história dos pacus.

Do mesmo modo, a esposa passou o final de semana inteiro reclamando sobre os animais. Vimos búfalos, emas, jacarés e veados – que o marido se divertiu ao espantar, brincando que mataria aquele belo “terneiro”. Não foi suficiente. Ela brigava com o guia, dizendo que deveriam avisar no site que não tinha tanto bicho assim por ali. Mais tarde, o guia contava como os “gringos” curtiam passar o dia inteiro na mata. A mulher não entendia. “Meu Deus, mas o que eles veem de tão interessante aqui?”.

Realmente. Quando não se consegue ver ou ouvir por conta própria, não adianta explicar.

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Ela veio me ver (por dentro)

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Cavaleiro Guaicuru, no Parque das Nações

Por Andriolli Costa

Toda semana, duas ou três vezes pelo menos, ela vinha me ver. A casa no centro de São Leopoldo também era nova para mim, e aos poucos ela percebia os rastros do meu eu que iam surgindo nos cômodos. Quadros de Zagor na paredes, inspirados pela coleção de quadrinhos que “herdei” de meu pai; um chapéu de palha no quarto, da época que cobria jornalismo rural; uma receita infalível de sopa paraguaia na cabeça, que servi com menos de um mês de namoro. Eram as minhas pegadas, que percorriam toda a trajetória que hoje me trouxe até o Rio Grande do Sul – e me fizeram conhecer a Jessika.

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Morada dos Baís

Nestas férias de dezembro, no entanto, decidimos percorrer o caminho de volta. Por quase 20 dias, caminhamos intensivamente por terras sul-mato-grossenses. Ao seu lado, redescobri com outros olhos o que sempre me foi familiar: comer espetinho com mandioca e shoyo na Feira Central; experimentar tereré de vários sabores (até de Red Bull) lá no Mercadão; passar a tarde no Parque das Nações admirando as capivaras. Até do Hino do meu Estado eu me lembrei – e de como eramos obrigados a decorá-lo durante 4ª série. Eram coisas que eu sempre fazia, ou que há muito deixara de fazer por não ser mais novidade. Com ela, tudo parecia novo.

“Eram coisas que eu sempre fazia, ou que há muito deixara de fazer por não ser mais novidade. Com ela, tudo parecia novo.”.

Ela veio me ver. Veio me ver por dentro. O movimento foi revigorante e, para dizer o mínimo, revelador – tanto para mim, quanto para a Jessika. Mato Grosso do Sul, a cada dia, mostrava mais sobre mim do que eu queria admitir. Facetas minhas que fugiam do meu controle. Ao mesmo tempo em que eu podia ver tanta coisa com a qual me identificava (que vão desde expressões como, “estar na pica do saci” a gostar de comer a sambiquira do frango), também me deparava com aquilo que me fez ir embora. Com aquilo que me frustra, irrita e incomoda. E que me fez buscar em outros lugares a oportunidade de fazer diferente.

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Provando Tereré

Talvez esta seja uma sensação comum a todos que já moram sozinhos, mas nunca me sinto a vontade quando volto para a casa do meu pai ou da minha mãe. As regras são outras, a rotina é diferente e eu sempre me sinto ocupando um espaço que não me pertence mais. Por isso gosto de estar sozinho, para fazer minhas próprias regras. No entanto, o retorno a minha verdadeira casa – a interior, não a física – é inevitável.

Eu nunca gostei muito de pequi, nem guariroba, mas era inevitável sentir um pouco de nostalgia quando encontrava esses ingredientes pelo Sul. Também nunca escutei muito Almir Sater ou Paulo Simões. Ainda assim, quando eu estava sentado, morrendo de nervoso aguardando ser chamado para a entrevista do Doutorado, cantarolava mentalmente um trecho do Trem do Pantanal. “Ele agora sabe que o medo viaja também sobre todos os trilhos da Terra”. Uma lembrança inconsciente de que aonde quer que estejamos, nossas inseguranças vão conosco. E talvez o retorno a nossa casa interior, com tudo que há de bom e de ruim, seja a melhor fonte de energia para os desafios que virão.

Falando sobre casas, não existe lugar em que eu me sinta mais a vontade em todo o Mato Grosso do Sul do que a chácara da minha avó. É a familiaridade do frango frito e do doce de leite no tacho de cobre; do cheiro das vacas cagando no mangueiro; do ronco dos bugios a tardinha na beirada do córrego – que parece as portas abertas do inferno, diga-se de passagem. Sons, cheiros e imagens que fazem parte da minha vida desde a infância.

9Lá eu vi muito do que faço: o jeito do meu pai rosnar para os cachorros, protegendo sua comida; o modo como a Vó espanta os cachorros da varanda; o jeito de falar do Vô, que incorporo inconscientemente no dia-a-dia. Não importa o momento, ou onde eu more, lá sempre será meu lugar.

E justamente por isso, fiquei tão feliz ao ver a Jessika se sentir em casa lá. Ao vê-la dando comida para o gado, armando comigo formas de colher uma jaca, levantando a saia para enfiar o pé no brejo e se espreguiçando toda na rede. Aquele não era só meu lugar, era o nosso.

No dia que estávamos para ir embora, enquanto sincronizava minha respiração com a dela para embalar o sono, a Jessika faz o balanço de nossa viagem. Vendo minha alegria pelo momento, ela reflete:

“Sabe, eu não tenho nenhum lugar como este para te apresentar. Nada que me faria ficar tão contente em te mostrar; que seja meu porto-seguro”, lamentou.

Sei de um lugar que pode ser seu porto seguro, amor – disse a ela.

Do meu lado.

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Os caminhos para um pós-jornalismo

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Jornalismo pós-industrial. Por: Andriolli Costa

Por Andrioli Costa

O repórter e o robô

Na manhã do dia 17 de março de 2014, o LA Times foi o primeiro jornal a veicular a notícia sobre um terremoto ocorrido minutos antes em Westwood, Califórnia. A matéria tinha como fonte apenas a base de dados do serviço de notificação de terremotos do U.S. Geological Survey e citava ainda outros tremores ocorridos na região nos últimos 10 dias — bem como todas as localidades afetadas. A postagem tinha tudo para ser apenas mais uma, que daria sequência a uma série de novas matérias produzidas pela redação ao longo do dia. Exceto, é claro, pelo conteúdo de seu último parágrafo: “este post foi criado por um algoritmo, desenvolvido pelo autor”.

O autor em questão é Ken Schwencke, editor de conteúdo digital do LA Times. Jornalista e programador, ele é o criador doQuakebot, um “robô” programado para escrever histórias baseadas em eventos sísmicos que preencham critérios de noticiabilidade previamente configurados. O bot posta automaticamente no servidor do jornal, gera uma imagem com base em mapas do Bing e informa os editores de que o texto está pronto para ser liberado. Além do Quakebot, Schwencke desenvolveu também o HomicideReport, um bot que publica um lead básico de todas as ocorrências de homicídio registradas em Los Angeles.

Já em abril, o periódico britânico The Guardian, que circulava nos Estados Unidos apenas em edição online, divulgou o lançamento de uma edição americana impressa e mensal totalmente produzida por bots. O #Open001 consiste em uma seleção de reportagens publicadas pelo Guardian ao longo da semana, escolhidas por algoritmos de acordo com sua aceitação nas redes sociais. Com a seleção feita, ARTHR, outro bot, diagrama as notícias nas páginas, cabendo ao editor apenas dar OK nas provas e enviá-las para impressão. O processo de fechamento completo leva cerca de uma hora e, de acordo com o desenvolvedor, poderá no futuro ser feito por qualquer pessoa — mesmo as sem conhecimento formal em jornalismo.

As notícias chamam a atenção inicialmente por seu caráter pitoresco, mas ganham especial relevância no sentido em que tensionam o jornalismo em um de seus fundamentos básicos: a notícia. Conteúdo jornalístico produzido com o auxílio de softwares é utilizado há mais de 50 anos, mas a elaboração autônoma de conteúdo é novidade. Muito se diz sobre o jornalismo não ser apenas “técnica”, e da importância da sensibilidade e da subjetividade do repórter, do “faro jornalístico” apurado, do traquejo do profissional ou mesmo do simples contato humano como determinantes para a construção social da notícia. Por outro lado, os bots e o assim chamado “jornalismo semântico” são exemplos extremos de quando esta é medida totalmente pela técnica.

O que isso representa para o jornalismo? Deontologicamente, muito pouco. A produção dos bots é o hard news puro, fundamentado em um lead básico para responder da forma mais simples possível às perguntas O quê? Quem? Como? Quando? Onde? e Por quê?. O trabalho de reportagem, investigação e contextualização social do acontecimento ainda seria imprescindível à atividade jornalística. Mas será que isso é feito de maneira adequada? Em um contexto de precarização das redações, levado a cabo por um círculo vicioso entre perda de anunciantes, quedas de audiência, dificuldade de monetização em ambiente virtual e reduções massivas de custo e equipes (os famosos “passaralhos”), sabemos que este tipo de material tem cada vez menos espaço nas organizações tradicionais.

As tensões que os bots evidenciam, desta forma, se dão no nível ontológico do jornalismo. Desconstroem, de início, a concepção antropocêntrica da própria produção noticiosa. É o que mostra o pesquisador Clister Clerwall, daKarstad University na Suécia, que realizou um estudo mostrando que a percepção de uma nota de “conteúdo autônomo” é indiscernível da escrita por um jornalista. A pesquisa apontou ainda que aspectos de qualidade como “clareza” e “leitura agradável” foram ligeiramente mais destacados em textos produzidos por humanos, enquanto “confiabilidade”, “informatividade” e “objetividade” se destacaram nos textos produzidos pelos algoritmos.

Clerwall resgata ainda que o jornalismo semântico é um braço do que é conhecido como “notícias algorítmicas”. São as matérias produzidas adaptadas à lógica dos pageviews e da otimização dos sistemas de busca. Ou seja, repórteres designados para reportagens inspiradas nas buscas populares no Google ou Yahoo. “Este tipo de notícia não se preocupa com o que o público precisa saber para tomar decisões e agir como cidadão na democracia, mas sim no que o público, em determinado momento, parece ‘querer’”. É tratar o leitor como consumidor, não como cidadão.

Muitos se perguntam se a máquina pode fazer melhor seu trabalho que um jornalista, mas, dentro da lógica acima, fica a provocação: ao servir à técnica, de que forma um humano produz melhor jornalismo que um robô? Quantas vezes, dentro das dinâmicas das horas de fechamento, não nos deixamos robotizar, produzindo sem introjeção ou reflexão, repetindo fórmulas, chavões e estereótipos? Para que e a quem serve um jornalismo como esse?

Jornalismo pós-industrial
A tecnologia do jornalismo produzido por algoritmos insere-se no contexto que o Tow Center, da Universidade de Columbia, nomeou em um relatório publicado em 2012 de jornalismo pós-industrial: adaptando-se ao presente. Escrito pelos pesquisadores C. W. Anderson, Clay Shirky e Emily Bell, o relatório, “parte pesquisa e parte manifesto”, retoma o termo utilizado no contexto jornalístico pela primeira vez por Doc Searls em 2001. Pós-Industrial, para ele, era aquele jornalismo não mais organizado de acordo com a lógica do maquinário de produção. Os autores, no entanto, propõem uma expansão do conceito para pensar também o papel do jornalismo no ecossistema midiático contemporâneo.

O relatório se debruça sobre o lugar ocupado pela imprensa e pelos profissionais de jornal em um mundo permeado por uma sociedade midiatizada; pela lógica conectiva das redes sociais; pela liberdade e alcance comunicativo do público (anteriormente “audiência”); por tecnologias e narrativas inovadoras criadas por startups ou por iniciativas midiáticas independentes ou mesmo sem fins lucrativos. Não é possível, afinal, olhar para mídias tão diferentes e ver algum tipo de unidade; seja no conteúdo, na linguagem, no modelo de negócios — ou mesmo na ausência dele.

Fala-se em um mundo em que jornalistas precisam “concorrer” com conteúdo produzido por atores humanos e não humanos, que ultrapassam os limites da antiga e coesa indústria de notícias. Isso se torna muito evidente na cobertura espontânea realizada durante protestos ou manifestações, como na Primavera Árabe — onde a imprensa oficial era impedida de noticiar os acontecimentos, mas as redes sociais tornaram-se a praça pública para a discussão, mobilização e ação social.

E no contexto nacional? Em um de seus artigos, Antonio Brasil, professor de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, dá a ver uma imagem interessante: um mundo em que a cobertura feita por “ninjas nas ruas” coexiste com a de “drones no ar”. Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação é a sigla do coletivo Mídia NINJA, braço do Fora do Eixo que emergiu com grande repercussão durante os protestos de junho passado. Seria possível compreender a cobertura pelos ninjas como jornalismo? Ou ainda, seria esta sequer uma pergunta relevante? Talvez mais importante seja pensar nos modos como ambas as mídias dialogam e tensionam uma a outra. O portalmidianinja.org, lançado em junho deste ano, é um grande exemplo desta relação.

De maneira semelhante e igualmente provocativa Anderson, Bell e Shirky perguntam: “seria o Facebook, do modo como é constituído hoje, uma empresa de notícias?”. A resposta, de acordo com o relatório de jornalismo pós-industrial, não seria nem sim, nem não, mas mu — que em linguagem de programação indica que a pergunta, como formulada, não tem resposta razoável. “O Facebook é fundamental para o ecossistema de notícias e, ainda que organizado de acordo com linhas fora de sincronia com qualquer coisa que reconheceríamos como organização jornalística, sua mera presença altera o contexto da pergunta.”

Pós-Jornalismo?

Para entender o que é e o que não é jornalismo, primeiramente é preciso definir sua estrutura e seus fundamentos. Dessa forma, é possível avaliar de maneira adequada as mudanças estruturais sem incorrer em neopatias, buscando na história da imprensa aquilo que é e permanece sendo essencial para a atividade.

Fato é que o jornalismo sempre executou uma série de funções, sendo a informativa apenas uma delas. No entanto, como bem aponta o relatório do Tow Center, nunca se teve muita urgência para defini-las. “No período em que o discurso público era escasso (o que quer dizer, toda a história até agora), jornalismo era simplesmente o que os jornalistas faziam”. Hoje, talvez mais do que nunca, ter claros estes conceitos torna-se imperativo para os estudos do campo.

Jornalismo pós-industrial é um termo que resolve de maneira bastante eficiente os desafios e perspectivas do jornalismo no tempo presente, e os estudos buscam mapear e explorar dilemas com os quais ainda estamos nos enfrentando. Seria possível, entretanto, vislumbrar a emergência de um possível pós-jornalismo? O prefixo “pós”, neste sentido, não tem necessariamente a conotação evolutiva ou linear, mas atópica.

Não é um novo jornalismo, ou um jornalismo superior, mas um novo lugar do qual lançar os olhos sobre o objeto jornalismo – e do qual este, por sua vez, também possa lançar os olhos sobre a sociedade. Um espaço onde as tensões homem x técnica, repórter x máquina, emissor x receptor se resolvam e deem origem a novas práticas, linguagens e organizações.

Fala-se em jornalismo pós-industrial, jornalismo líquido, funções massivas e pós-massivas, pós e protojornalismo. Fala-se em ciberacontecimentos e em jornalismo de multidões. Todos são conceitos que, cada um à sua forma, tentam compreender o que vivemos hoje e dão pistas sobre o que ainda está pela frente.

Vislumbrar este lugar do “pós”, buscando conhecer um panorama de diferentes visões sobre o assunto, é o objetivo desta edição da IHU On-Line. Ainda que seja difícil, a partir do presente, chegar a alguma conclusão sobre o que virá, não acreditamos que este seja um mero exercício de futurologia. Mesmo porque, ainda no século passado, o escritor William Gibson já nos lembrava: “o futuro já chegou. Só não está igualmente distribuído”.

“A gente não morre, fica encantado”

10277346_10201796903878536_3231607410095372842_nFoi com meus avós que aprendi a gostar de ouvir e contar histórias. Ela, com a paciência que só uma vó pode ter, embalava meu sono contando e recontando os mesmos causos ao longo da noite. Ele, com sua sabedoria tipicamente sertaneja, me convidava desde cedo a dar valor não só ao que a escola ensinava, mas também a abrir os ouvidos para o que o povo tinha a dizer.

É engraçado falar de ouvido, já que meu avô não escuta palavra desde que me entendo por gente. Sempre recusou o aparelho. Dizia que para algumas coisas no mundo, era melhor ser surdo mesmo. O vô não ouvia, mas adorava falar. Encarrapichado em sua chacrinha, sozinho com a esposa e os bichos, ele se regozijava quando recebia visitas. No fim de ano então, quando o velho galpão ganhava clima de festa, aí mesmo que ele gastava a língua. Falava por horas a fio, dos mais variados assuntos. Às vezes mais de uma vez.

Das poucas palavras que captava da horas de prosa, e das cenas que pescava da televisão, construía um mundo costurado por sua própria lógica. Tinha teorias para tudo: do fim do mundo em 2012 à renuncia do Papa; do futuro do jornalismo ao casamento gay. Por vezes, como numa brincadeira de telefone sem fio, o acontecimento original ganhava ares ainda mais fabulosos em sua cabeça. Mesmo assim, e isso era o que mais me divertia, de uma forma ou de outra aquilo tudo acabava fazendo sentido. Algum sentido.

Uma vez o vô contou uma história, daquelas que pega todo mundo de surpresa e que ninguém sabe de onde veio. Dizia de um homem que fez um acordo com Deus: só seria levado para o céu ou para o inferno por alguém que fosse justo. Ao longo dos anos várias entidades visitaram o homem, mas nenhuma era justa o bastante para que o acordo fosse cumprido. Nem os anjos, nem os santos, nem o próprio Jesus. Até que um dia, a Morte em pessoa veio buscá-lo. “Com você eu vou”, disse o homem. “Para você não existe homem ou mulher, rico ou pobre, preto ou branco. Diante da Morte, somos todos iguais”. E subiu, enfim, para o reino dos céus.

Meu avô está com câncer.

10174797_10201796657192369_3131435643898499472_nA descoberta veio no mesmo dia da cirurgia de emergência, pois a metástase já havia devorado todo seu intestino. Ao longo de seus imprecisos 80 e tantos anos, o Vô já disse vários “nãos” para a morte (ou seriam “sims” para a vida?). Oliveira Serafim da Costa, cearense orgulhoso e devoto do padrinho Padre Cícero, misturava veneno para a lavoura com as mãos nuas e sem camisa. Sobreviveu à uma queda quando criança que lhe partiu a cabeça; à fome e à seca do nordeste e à insuportável dor que é a saudade da família e da terra natal. Após tantos “nãos”, torço de todo o coração para que o câncer seja mais um dos injustos que veio tentar te levar. E que ainda restem vários anos até que alguém digno finalmente apareça. Ainda assim, vô, penso em um final diferente para sua história.

Esses dias li uma frase que se encaixa perfeitamente neste momento. “A gente não morre, fica encantado”, recitou João Guimarães Rosa em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. Três dias depois, ele próprio encantou-se. Assim será com você, vô. Quando sua hora chegar – e que não seja agora, você viverá para sempre em nossas memórias, e nas histórias que contaremos a partir delas. O corpo se vai, mas as histórias são eternas. Eu já rezei por sua saúde do jeito tradicional, como aprendi na igreja, mas acho que esta é a oração mais poderosa que posso fazer em seu nome. Não se preocupe, querido avô. A gente não morre. A gente não morre…

(Andriolli Costa)

Halloween é o cacete? Considerações sobre o Dia do Saci

Halloween é o cacete? Considerações sobre o Dia do Saci

A forte recepção negativa do público nas redes sociais mostra que a intolerância e a imposição não são o caminho certo

Movimento nacionalsta MV Brasil protestando pela cultura nacional. Será que a agressão é o caminho?

Movimento nacionalsta MV Brasil protestando pela cultura nacional. Será que a agressão é o caminho?

Começarei este texto invertendo um pouco a estrutura de um artigo de opinião. Isto porque, neste caso, cabe deixar claro logo de início o meu lugar de fala. Escrevo, primeiramente, como um entusiasta da tradição popular, como compilador de todo tipo de narrativa folclórica e, por que não, como associado nº 930 da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci).

Por outro lado, falo também como jornalista, como ex-gestor de uma revista eletrônica sobre cultura popular, e como pesquisador que tem se dedicado a compreender as diversas formas pelas quais os mitos e lendas se manifestam nas páginas dos jornais. E é neste contexto que me peguei bastante intrigado com o que observei no último 31 de outubro, com a grande disputa ideológica entre apoiadores do Halloween e do Dia do Saci. Desta vez não na seara da imprensa, mas na das redes sociais.

Saci, José Luiz Ohi

Recepção

Durante os últimos quatro ou cinco anos venho acompanhando nas redes sociais as discussões que se seguem sempre que chegamos ao dia 31, e nunca havia visto em minha timeline tantas mensagens negativas envolvendo o Dia do Saci. Mais do que isso, a natureza das críticas me chamou bastante a atenção. Havia a desqualificação e o deboche do folclore brasileiro – como sempre houve – mas o realmente importante era a manifestação do simples desejo de festejar aquilo que bem entendessem.

Imagem Estúdio Saci

Imagem divulgada pelo Instituto Saci no Facebook foi bastante criticada pelos seguidores da página

Basta uma rápida olhada nas mensagens compartilhadas para compreender. As bem-humoradas artes da Sosaci dividiam espaço com mensagens nacionalistas que berravam: “Halloween é o cacete! Viva a cultura nacional”. Outras faziam a ligação dos sacis com os black blocs clamando “Fora Halloween”. Comentários taxavam de alienados ou de antipatriotas aqueles que comemoravam uma festa estrangeira.

A antipatia foi compreensível. “Feliz dia do pseudomoralista que diz que devemos comemorar o Saci no lugar do Halloween”, diz um tweet divulgado pela Veja SP. “Que chato esse pessoal reclamando que Halloween não é uma festa brasileira. Natal também não!”, alfineta o blogueiro gaúcho Rafael Rodrigues. A defesa da cultura local virou até mote de piada no blog Não Salvo.

Pelo Facebook, o usuário Fabio Donaire relembra que o Halloween não é uma apenas uma festa americana, mas a celebração do Samahin celta, que foi apropriado e reimaginado por diversas culturas entre elas a dos Estados Unidos. Desta forma, levando em conta que os próprios mitos brasileiros são gerados de influências indígenas, negras e europeias, Donaire conclui propondo: “Saci e Halloween são fatias do mesmo bolo”.

E arremata: “Enquanto você está aí pensando, o Saci deve estar em festa!”.

Novo clipe de Detonator e as Musas do Metal brincam com a polêmica

Novo clipe de Detonator e as Musas do Metal brinca com a polêmica

Intolerância

Compreendo que as mensagens mais enfáticas em defesa do Dia do Saci vem da vontade de legitimar uma ideia frente a outra, hegemônica e internalizada. Ainda assim, com tantas reações contrárias, será que é este o caminho? Não acredito que seja possível convencer o outro a mudar de ideia – ou ao menos a simpatizar com a causa – agredindo e desqualificando seus comportamentos. A postura mais natural é que o interlocutor reaja defensivamente, e foi o que aconteceu.

O Dia do Saci não é um feriado nacional. A proposta de sua criação ocorreu em 2003, com dois projetos de lei que não foram aprovados. No entanto, de lá para cá, a data já foi instituída como feriado municipal em dez municípios, principalmente no interior de São Paulo. Isso não impediu que várias outras cidades também passassem a promover suas próprias brincadeiras em homenagem ao diabrete brasileiro. Esse é o espírito.

O desejo de festejar não deve ser imposto a ninguém. Se não for algo espontâneo, vira teatro, vira encenação. A espontaneidade, afinal, é uma das principais características da cultura popular. O fato folclórico existe a partir do povo, e acompanha esta sociedade. Quando deixar de fazer sentido, vira outra coisa. Simples assim.

Aquele que quer se vestir de Fantasma ou Vampiro e pedir doces na rua tem tanto direito de fazer isso quanto quem deseja celebrar com um gorro vermelho na cabeça. O Dia do Saci não é – ou não deve ser – um contra-ataque ao Halloween. Afinal, se o desejo é trazer mais pessoas para a “equipe Saci”, não é assim que se convence ninguém.

A "Saciata", uma passeada em um pé só organizada pelo professor de filosofia Chico Nunes

A “Saciata”, uma passeada em um pé só organizada pelo professor de filosofia Chico Nunes

Caminhos possíveis

Se uma campanha ideológica contrária ao Dia das Bruxas não é a melhor alternativa, então qual seria? Penso que há duas frentes possíveis. A primeira é a que se aproveita da data para apelar ao lúdico e à tradição, com ações divertidas e espirituosas que chamam a atenção do povo para a valorização da cultura brasileira sem agredir o interlocutor.

Em Guarulhos, por exemplo, um projetor fez o saci pular de prédio em prédio, fazendo estripulias e lembrando o Dia do Saci. Na capital paulista, o professor de Filosofia da Cásper Líbero, Chico Nunes, também chamou a atenção com duas iniciativas em comemoração a data. No dia 30, junto ao jornalista esportivo Celso Unzelte, organizou uma partida de futebol de um pé só na quadra da Faculdade. No outro dia, distribuiu gorros e promoveu uma “Saciata”, que atravessava a Avenida Paulista.

A segunda frente possível, por sua vez, busca a valorização e ressignificação da cultura popular brasileira durante todo o ano, não apenas em uma única data (ou duas, contando o Dia do Folclore, em 22 de agosto). É esta que lembra as pessoas de como o folclore faz parte de suas vidas, mesmo que muitas vezes não se apercebam, e busca dar novo sentido à manifestações que por vezes são tidas como coisa de criança.

Destaco, nesta área, o trabalho feito pelos artistas das mais diversas mídias que se apropriam da cultura popular para comunicar com todo tipo de público. O violeiro Paulo Freire, autor de Nuá – As Música dos Mitos Brasileiros, canta a beleza da cultura interiorana e cativa pelo encantamento. Animações como a série Juro que Vi, de Humberto Avelar, resgatam o lendário pela estética do maravilhoso que lembra os antigos filmes da Disney. Por sua vez, escritores como Simone Saueressig, de Contos do Sul, ou o quadrinista Giorgio Galli, de Salomão Ventura – Caçador de Lendas apostam no terror e na violência para dar novo sentido ao bestiário brasileiro. Crianças, jovens, adultos… Não há quem não seja capturado pela força das narrativas.

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Por que o Saci?

barca-e-saciO Saci é um estandarte, e um símbolo. Cansado de topar com estátuas de duendes nibelungos na cidade de São Paulo, Monteiro Lobato o elegeu como ícone de sua campanha pela valorização do folclore brasileiro. Afinal, o sincretismo do diabrete era tipicamente brasileiro: veio da mistura do Jacy Yateré dos Guarani, que mais tarde foi apropriado pelos negros e, por fim, ganha um gorro mágico típico dos duendes europeus.

Lobato convocou os leitores do jornal O Estado de São Paulo a compartilharem suas histórias sobre o negrinho. O grande engajamento do público deu origem ao livro Saci Pererê: Resultado de um Inquérito, de 1918, assinado por Lobato sob o pseudônimo de “Um demonólogo amador”. Houve, em 2006, uma tentativa de reabertura do inquérito, ainda que sem tanta participação popular.

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E por que um Dia do Saci?

Caçadores de Assombração em Mariana/MG. Foco de diversas reportagens que chamavam atenção para a cultura do município

Não posso falar sobre o que pensavam os idealizadores com a criação da data, mas sim da pertinência de sua existência a partir do meu lugar de fala já apresentado no começo deste texto:

A imprensa normalmente aborda mitos e lendas folclóricas pelo seu caráter pitoresco, pela espetacularização ou pelo absurdo. Muitas vezes estas matérias estão em suplementos infantis ou de variedades, por vezes escritas em tom irônico ou de deboche. A Veja SP, por exemplo, em uma matéria informando sobre as comemorações do Dia do Saci, pontua: “Claro, a festividade não é para ser levada tão a sério”. Claro…

Outros exemplos acompanhados, no entanto, foram bem pouco taxativos e apresentaram várias soluções para uma cobertura criativa. O Hora, de Santa Catarina, aproveitou para lembrar que em Florianópolis todo dia é das bruxas – uma referência à popularidade do mito na região. Criaram ainda uma série, onde durante um mês diversos mitos eram ilustrados no jornal. A Globo Rural relembrou Joanópolis, a cidade conhecida como a Capital do Lobisomem. Mesmo a Folha de São Paulo trouxe a matéria Homem relata encontro com saci no interior de São Paulo, com uma pequena entrevista com o presidente da Associação Nacional dos Criadores de Saci (ANCSaci)..

São pautas diferenciadas, que voltam os olhos da população para os diversos aspectos da riquíssima cultura popular brasileira. Este sim, o verdadeiro grande motivo para a criação de um Dia do Saci.

Nem tanto ao céu, nem tanto à terra

Nem tanto ao céu, nem tanto à terra

Por uma interpretação complexa da vida

Manifestantes durante o Outono Quente. Alienados e  engajados, desorganizados e coesos. A vida é complexa demais para ser reduzida à rótulos

Alienados e engajados, desorganizados e coesos. A vida é complexa demais para ser reduzida à rótulos

Autor: Andriolli Costa

Tem me chamado a atenção nos últimos tempos o apreço do público por personagens que escapam das antigas concepções maniqueístas. Tanto no audiovisual quanto na literatura valoriza-se muito os personagens em tons de cinza (em oposição àqueles em preto e branco). Nas histórias desse tipo, existe a dúvida, o questionamento, o erro, a incoerência, a mudança e a evolução. O herói não é mais completamente bonzinho e nem o vilão inteiramente mal. Ambos podem cometer atos terríveis ou maravilhosos, guiados por sentimentos e convicções próprias. São, pois, humanos.

No entanto, é interessante notar como o mesmo maniqueísmo criticado na ficção ganha livremente espaço no mundo real. Pessoas são rotuladas e dispostas em grupos sociais de evidente oposição. Ou se é de Esquerda ou de Direita; ou Liberal ou Democrata, e o diálogo ou a simples simpatia por alguma característica de ambos os grupos é algo extremamente mal visto. Assim, chegamos à lógica de um país onde quem for a favor do casamento gay é evidentemente de Esquerda, e quem for contra as invasões de terra pelo MST é obrigatoriamente de Direita. Pelo menos segundo o teste de perfil ideológico da Folha de São Paulo.

O biólogo Paulo Nascimento, conhecido como Pirula, gravou vídeos em seu blog com ponderações equilibradas sobre testes em animais. Nem todo mundo entendeu.

O biólogo Paulo Nascimento, o Pirula, gravou vídeos em seu canal do Youtube com ponderações equilibradas sobre testes em animais. Nem todo mundo entendeu.

A sociedade está imersa em uma lógica binária, onde ou se é uma coisa ou outra, ou verdade ou mentira, ou isto ou aquilo. Aquele que não apoia os protestos violentos, o vandalismo e o ataque a funcionários de grandes instituições, é automaticamente a favor da repressão policial, da exploração capitalista, da alienação do povo pela mídia. Quem não aprova a invasão de laboratórios particulares para a libertação de Beagles é imediatamente acusado de ser favorável à tortura e à violência contra os animais. O caminho do meio desagrada igualmente todos os envolvidos, mas permite um olhar muito menos limitante.

No filme Ponto de Mutação (1990), uma cientista, um político e um poeta questionam durante toda a película o reducionismo da visão cartesiana do mundo, que o via como uma máquina cheia de pequenos componentes. Alguns personagens defendem o pensamento sistêmico, que compreende o mundo em relação e integração. É o Todo que explica as partes, sem que a soma das partes seja capaz de explicar o todo. No final, entretanto, após ficar calado por boa parte do filme, o poeta toma a palavra. “Eu me sinto tão limitado ao ser chamado de sistema quanto ao ser chamado de máquina”, pondera ele. “A vida é muito mais do que isso”.

Capa do filme Ponto de Mutação, adaptação do livro de Fritjof Capra

Capa do filme Ponto de Mutação, adaptação do livro de Fritjof Capra

Uma visão maniqueísta do mundo favorece o surgimento de grupos antagonistas. Estes rótulos são atraentes, especialmente para a mídia – tanto a dentro quanto a fora do eixo. Ouve-se os dois lados, como se existissem apenas dois, ou como se ambos fossem diametralmente opostos. É fácil, por exemplo, rotular a figura do indígena (cachaceiro, massa de manobra), assim como a do produtor rural (coronel, opressor). Mas será que reiterar estes estereótipos realmente traz algo de bom para a discussão? A comunicação, lembra Cremilda Medina, vem da comunhão e não da rejeição.

Antes de índio, fazendeiro, gay, pastor, repórter da Globo, Black Block ou Policial Militar, estamos lidando com um ser humano. Alguém que tem familiares, amigos, sentimentos. Que tem uma vida. Caso tenha errado ou cometido algum crime, então que seja julgada e talvez condenada – mas pelo que fez, não pelo grupo ao qual pertence. Não é questão de ser imparcial, mas de não ser leviano. Uma pessoa não é seu trabalho, sua ideologia, seu credo, suas opiniões. Ela é o todo resultante de tudo isso, sem que cada parte específica seja capaz de explicar o seu ser. A vida, como já dizia o poeta, é infinita como a areia incontável. A vida é simplesmente mais.

Trecho do monólogo do poeta em Ponto de Mutação, declamando Pablo Neruda

A Polícia da Fraude

A Polícia da Fraude 

Ou como se livrar do sentimento de não ser tão bom quanto os outros dizem

Exam StudiesAndriolli Costa

Em vias de conclusão do mestrado, com a dissertação finalizada e depositada no prazo correto – mas não sem muito sofrimento, encontro-me novamente com tempo e tranquilidade. Não que antes eu tivesse uma rotina extremamente fechada de estudo, leitura e escrita. Até porque isso nunca aconteceu; jamais tive tamanha disciplina. No entanto, até a última linha ser redigida e devidamente revisada, tudo aquilo que fugia do âmbito da dissertação era causa de grande peso na consciência. De sair com os amigos a ligar para a namorada, de ir ao cinema a ler um livro de ficção. Você invariavelmente acaba fazendo tudo isso, mas a culpa está sempre ali.

Durante os dois anos necessários para a conclusão de minha pesquisa, precisei lidar com um sentimento bastante nocivo que muitas vezes me afligia. Com o contato com colegas, profissionais e um pouco de pesquisa sobre o assunto, percebi que aquela sensação era mais comum do que eu imaginava. Acontece que a cada nova aprovação em eventos, a cada premiação, a cada vitória, mais do que satisfeito eu me sentia oprimido. É a sensação de sentir-se um impostor; um farsante. Como se você tivesse conquistado aquela vaga por sorte, como se tivesse aprovado aquele artigo por engano. É a pressão de não ser tão bom quanto os outros dizem que você é.

Este texto pode ser acusado de autoindulgência, mas a sensação é verídica. Quando você começa a se sentir assim, a insegurança leva a comportamentos facilmente reconhecíveis. Basta o primeiro capítulo voltar cheio de marcações em vermelho que você se frustra e desqualifica todo o seu trabalho como sendo um lixo. Logo inicia um processo de autodepreciação, numa tentativa evidente (mas por vezes inconsciente) de receber elogios que lhe afaguem o ego. A torcida dos amigos transforma-se em cobrança. Você se apega às pequenas conquistas e premiações, mas as esquece tão rápido quanto surge a primeira derrota ou recusa, por menos significantes que elas sejam.

Julgar-me incapaz de concluir meus objetivos atrasou bastante a minha escrita. Frequentemente precisei recorrer aos conselhos da orientadora para me desvencilhar daquela sensação paralisante (“Se eu não acreditasse em você não tinha investido dois anos de trabalho. Pare com essa insegurança e vá escrever!”). Foi na área da literatura, no entanto, que encontrei alento. Em mais um penoso momento de procrastinação, acabei por me deparar com o discurso motivacional que um dos meus escritores favoritos, o britânico Neil Gaiman, proferiu em 2012 para os graduandos da Universidade das Artes na Filadélfia. Em meio às palavras de encorajamento e à troca de experiências, ele alertava: “Os problemas do fracasso são graves, mas os problemas do sucesso são maiores ainda, pois ninguém te alerta sobre eles”. Gaiman, um autor aclamado pelo público e pela crítica, dizia ter demorado muito para se livrar de uma sensação muito parecida com a que eu tinha.

O problema, mesmo do mais limitado tipo de sucesso, é a inabalável convicção de que você está escapando com alguma coisa e que a qualquer momento podem te descobrir. É a Síndrome do Impostor,  algo que minha esposa Amanda batizou de Polícia da Fraude.

– Neil Gaiman (2012)

Neil-Gaiman

Neil Gaiman (52) ficou famoso na década de 1980 e 1990 com a HQ Sandman. Escreveu vários romances para jovens e adultos, como Deuses Americanos, Coraline e o recém-lançado O Oceano no Fim do Caminho

A metáfora do escritor falava sobre a expectativa de que, a qualquer momento, alguém bateria a sua porta para dizer que estava tudo acabado. “Nós o pegamos”, diriam eles, e a farsa teria chegado a um trágico final. Conviver com este pensamento é uma auto-sabotagem, que inibe diversos projetos de verem a luz do sol, e diversas pessoas de se sentirem satisfeitas e orgulhosas das conquistas do dia a dia. Assim, sempre que alguém for confrontado por este tipo de sentimento, Gaiman aconselha: Apenas faça sua arte. Independente de qualquer coisa, faça sua arte – e da melhor forma possível.

O conselho pode parecer simplista, mas é eficiente. A sensação nociva e o  pensamento autodepreciativo são alimentados por nossas próprias inseguranças. Ao tomar consciência deste processo e concentrar-se em fazer seu trabalho com dedicação, o monstro começa a ser domado pouco a pouco. Não se trata de ser aquilo que os outros acham que você pode ser, ou de fazer jus a alguma expectativa alheia. Trata-se de dar o seu melhor em qualquer situação e, vencendo ou perdendo, dormir tranquilo sabendo que usou todas as armas a  sua disposição. Funcionou para mim, talvez funcione para você.

Assista aqui ao discurso de Neil Gaiman

 

Opinião: O Fantástico na Encruzilhada

Em 2011, o diretor Martin Scorcese reviveu a memória de um dos grandes precursores da arte cinematográfica: o francês George Méliès. Neste longa-metragem o público (re)descobriu a obra do ilusionista que trocou os glamurosos palcos das casas de espetáculo pelos estúdios de cinema, e levou toda a sua magia e domínio da arte de encantar o público para a tela grande.

Scorcese recriou cenas dos grandes filmes de Méliès

Antes de Méliès, o cinema retratava apenas a “realidade”, com narrativas que abordavam situações do cotidiano. O diretor inovou ao produzir os primeiros efeitos especiais, apostando em narrativas de fantasia. Chegou a lançar quase 500 filmes, em que atuava, dirigia e roteirizava. Entre seus feitos mais memoráveis, está o de ter sido o primeiro cineasta a levar o homem à lua, ainda em 1902.

A decadência, no entanto, também bateu a sua porta. Num momento de frustração e desespero o diretor incinerou seu estúdio e todos os negativos que estavam em sua posse. Diversas que sejam as razões que levaram a este final trágico, Scorcese elege para seu filme uma bastante emblemática: a de que a crise de Méliès seria fruto do pós-guerra. “Aqueles que voltavam tinham visto tanta realidade nos campos de batalha que não tinham mais interesse nos meus filmes”, recorda Méliès de Scorcese.

Vamos nos atentar a essa a esta palavra; realidade. O que era este “real” que os ex-combatentes queriam ver nas telas de cinema? Seria a simples transposição do cotidiano, como eram os filmes anteriores a Méliès? Duvido muito. O mundo havia ficado menos inocente após os conflitos mundiais, e a Europa, berço do diretor, havia testemunhado drasticamente suas consequências. Com toda a tensão política, o pessimismo e a barbárie que se testemunhava, os filmes antigos pareciam inocentes demais. Bobos demais. O público buscava uma catarse para sentimentos que Méliès e seus truques de mágica na sala de edição não era capaz de extrair.

Este fenômeno, que marcou a primeira metade do século XX, espalhou-se lentamente e hoje pode ver percebido sem dificuldades nas narrativas de fantasia do século XXI. Não basta verossimilhança; o público exige cada vez mais que o texto fantástico, para ser crível, seja impregnado de realismo. E estas marcas do mundo real se apresentam na forma de violência, engajamento e erotismo.

Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Mau em “A Garota da Capa Vermelha”

Exemplo disso é o grande movimento de desconstrução e atualização das fábulas e contos de fada. No cinema, filmes como A Garota da Capa Vermelha ou o seriado Grimm (2011) recontam histórias clássicas, que ganham novas roupagens cheias de batalhas sangrentas e tensão sexual. No universo das HQs, Alan Moore subverte ainda mais o gênero em Lost Girls, onde as versões adultas de Alice (do País das Maravilhas), Dorothy (de Oz) e Wendy (da Terra do Nunca), compartilham aventuras eróticas. A história é repleta de cenas de estupro, incesto, orgias e lesbianismo. Nos contos de fada modernos, a máxima do “felizes para sempre” é abandonada. Hoje, se alguém está feliz é por que ainda não chegou ao final da história.

Outro caso bastante perceptível é a mudança nas narrativas de super-heróis, o panteão do imaginário contemporâneo. Personagens como o Superman, reconhecidos por sua retidão de caráter, com fortes ideais de justiça, heroísmo e bondade, deixaram de ser sucessos comerciais e viram suas tiragens cada vez menores. O público não aceitava mais os escoteiros, os homens perfeitos. “Ninguém é tão bonzinho assim”. Deu-se a ascensão dos anti-heróis e dos personagens sombrios, violentos e carregados de dramas psicológicos.

Doutor Luz violenta mulher do Homem Elástico

Com o novo rumo escolhido pelas editoras, os quadrinhos deixaram de vez de ser produto de consumo infantil. Personagens como a Estelar, dos Titãs – que já foi protagonista de um desenho para crianças – tiveram seu apelo erótico reforçado. Com o estupro da mulher do Homem Elástico, a ameaça dos vilões deixou de resultar apenas numa troca de sopapos. Em termos comerciais a “fórmula” parece clara. No cinema. o enorme sucesso comercial do último filme do Batman (US$ 1,2 bilhões) frente ao fracasso do longa do Lanterna Verde (US$ 219 milhões) – personagens da mesma produtora e editora – fez executivos da Warner questionarem se um filme mais “sombrio e ousado” não teria feito melhores somas.

Mas será mesmo essa a resposta para tudo? Tanto o excesso de luz quanto o de escuridão cegam da mesma maneira. Elementos realistas na fantasia são interessantes e, bem construídos, são capazes de fazer de histórias simples, narrativas memoráveis. No entanto, quando a mão do artista pesa, a supervalorização dos tons de cinza pode escurecer demais o quadro.

Histórias mais simples, que não envolvem traições, conspirações políticas e personagens afetados são constantemente criticadas por serem maniqueístas, rasas e inocentes demais. No entanto, o excesso de realismo muitas vezes é cansativo, e esgota o público quando este busca na narrativa não a transcendência, mas sim o encantamento.

Estas pessoas encontram o que procuram no fantástico, que ainda mantém um quê de mágico, de lúdico e de inexplicável em sua busca última, que é a de maravilhar o espectador. É como o Méliès apresentado por Scorcese, que queria fazer de sua arte uma máquina de construir sonhos. E os sonhos nem sempre são limitados por algo tão simplório quanto a realidade.

* Andriolli Costa é jornalista de Campo Grande/MS