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Andriolli Costa

Andriolli Costa é Jornalista sul-mato-grossense em terras gaúchas. Mitólogo, pesquisador de folclore e cultura popular.
Andriolli Costa tem escrito 154 posts para Andriolli Costa – Portfólio

Fazendo gênero. Nossos corpos, nossas regras

Por Andriolli Costa
Publicado em 20/04/2015
IHU On-Line nº 463

Eric Seger - Valeska Linauer

Eric Seger. Foto: Valeska Linauer

Desde 2013 ele passou a se apresentar como Eric. O nome ele escolheu, mas sua identidade de homem trans nunca foi alvo de escolha, mas de descoberta e aceitação. Os familiares, na medida do possível, foram compreensivos. Ainda hoje escorregam em artigos ou pronomes de tratamento adequados. No entanto, comemora, ao menos não o haviam expulsado de casa.

“Eles entenderiam melhor se eu assumisse a narrativa de que eu era um homem em corpo de mulher. Se dissesse que estava no corpo errado.” No entanto, isso não era verdade para Eric. Nunca foi. “Meu corpo nunca esteve errado. Eu sempre fui homem, mesmo que não me parecesse com o que se espera de um homem”, esclarece. Eric Seger, aos 28 anos, nos lembra que a questão de gênero transcende a questão biológica.

Maria Fernanda faz do corpo uma mensagem política de autoafirmação. Ostenta com orgulho os pelos debaixo do braço, cultivados ao longo de quase dois anos. Uma lembrança para a sociedade — e para ela mesma — de que não precisa seguir padrões de qualquer tipo para ser mais ou menos mulher. Simpatizante das vertentes mais radicais do feminismo, concorda com a ideia de que o homem (como classe, não indivíduo) é um inimigo. Uma relação semelhante à aproximação desconfiada entre patrão e empregado, que não perde de vista a estrutura de dominação.

“Não é questão de ódio, mas de medo. Eu me relaciono sexualmente e afetivamente com homens, sou amiga deles, mas em última instância eles ainda são homens”, lembra, mencionando casos de violência e abuso que ocorrem todos os dias. O esclarecimento, entretanto, não a livrou do sofrimento. Por diversas vezes esteve em relacionamentos abusivos, marcados por chantagens e jogos emocionais.

“Quando vivemos essas situações, não percebemos o abuso. Para chegar ao ponto de admitir isso em uma entrevista, foi preciso primeiro admitir para mim mesma”, assinala. Assim como ela, uma em cada três mulheres em todo o mundo sofre violência por parte de seus parceiros, segundo a ONU. Militantes ou não. Maria Fernanda Salaberry, também aos 28 anos, nos lembra que gênero é um campo de enfrentamento.

Pouco depois de iniciar seu processo de transição, já com mais de 30 anos de idade, Luisa entrou em depressão e esteve reclusa por longos períodos. Tinha medo da reação que as pessoas viriam a ter. Familiares, conhecidos da rua, colegas de trabalho, todos pareciam pressioná-la. Antes de qualquer cirurgia a dignidade começou a retornar a sua vida com a alteração de seu nome social. Os implantes de silicone e a redesignação sexual, por sua vez, vieram para torná-la uma pessoa completa. Não era uma “troca de sexo”, como se diz no popular. Era uma readequação. Algo que ela mesma pôde atestar juridicamente, ao dar entrada, como advogada, em seu próprio pedido de alteração documental.

“Eu queria me olhar no espelho e me ver com uma aparência feminina. Antes disso, meu subconsciente parecia bloquear qualquer relacionamento que eu pudesse ter.” A vontade de estar com homens veio apenas com a transição pronta. Não com a cirurgia feita, mas com a identidade feminina formada. Luisa nunca se sentiu gay, mas uma mulher (trans) heterossexual. Essa não é a regra, e há diversos casos de gays e lésbicas entre os transgêneros, o que gera ainda mais incompreensão. Luisa Helena Stern, 48 anos, nos lembra que sexualidade e identidade de gênero são tópicos totalmente independentes.

Quando o filho de Fabiane nasceu, seu primeiro brinquedo foi uma bonequinha negra. O pai quis protestar — mais por boneca, que por negra. Em nada adiantou. Não seriam coisas tão pequenas que determinariam a masculinidade de seu filho, ela sabia. Quem, afinal, havia inventado que aquele era um brinquedo só de meninas? Para Fabiane, categorizar o mundo entre coisas de menino e de menina nunca fez muito sentido. Ainda assim, mesmo na idade adulta, as oportunidades continuavam a seguir essa lógica. Para ela, diziam, bastava o magistério. Era uma atividade adequada para uma mulher, e ela estaria cercada de crianças e de outras senhoras. Ignorou. Formou-se em Direito.

Longe de escritórios de advocacia ou de estágios no Ministério Público, ela encontrou seu lugar logo cedo em uma ONG de empoderamento feminino, a Themis, e nela permanece atuando até hoje. Para ela, ser mulher nunca se reduz à maternagem, mas a consciência adquirida acabou incorporada em sua vida. Algo que transparece na educação de seu filho, com 10 anos de idade. “Esses dias mesmo ele pegou meu sutiã do chão, colocou e começou a brincar.” Ela se divertiu com a cena, e entrou na onda. “É, tá faltando um pouco de peito aí, hein?” Fabiane Simioni, 35, recorda que aquilo que consideramos masculino ou feminino é construído com base em convenções sociais.

Vivências de gênero
Maria Fernanda Salaberry - Dani Berwanger1.jpgEric, Maria Fernanda, Luisa e Fabiane nos lembram de muitas coisas, mas a principal delas é de que ainda há muita confusão e desinformação envolvendo questões de gênero na nossa sociedade. Conforme o avanço das décadas, o antigo adágio de que a anatomia é o destino vem paulatinamente caindo por terra. Tanto que, para evitar uma distinção baseada entre pessoas trans e pessoas “normais”, utiliza-se o termo cissexual para se referir àqueles que se identificam com o gênero ao qual foram impostos. Mas, se gênero não é sinônimo de sexo biológico, e muito menos está ligado à orientação sexual, como é possível defini-lo?

O psicólogo cis Lucas Goulart, militante da ONG Somos e membro do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero UFRGS — o NUPSEX, esclarece que gênero é uma construção social. Ou seja, para além do macho e da fêmea, é a forma como os papéis de masculino e feminino são atribuídos, transformando os sujeitos em homens e mulheres. A orientação sexual, por outro lado, diz respeito ao interesse sexual por pessoas. E ainda que muitas vezes haja relação entre os dois termos, aquele que se identifica como gay não deseja ser uma mulher. O fato indica apenas que ele é um homem gay.

Basta olhar o cotidiano para ver como as questões de gênero estão presentes desde o nascimento até o fim da vida. Não se trata apenas de escolher um enxoval azul ou rosa para os bebês, ou de comprar carrinhos para um e panelinhas para o outro. Parte desde a decisão de ter ou não uma criança, e as consequências disso. “Volta e meia aparece no jornal uma matéria sobre um pai ‘herói’ que criou sozinho um filho após o abandono da mãe”, resgata Lucas. “Mas se a mídia escrevesse uma matéria para cada mãe solteira que faz o mesmo, não haveria jornal para dar conta.”

Entretanto, o assunto não se restringe às questões do feminino. O garoto proibido de fazer dança ou cursar uma faculdade de artes plásticas por ser coisa de menina; o rapaz que se fecha com os amigos para não parecer emotivo e afeminado; ou a pessoa trans que desenvolve transtornos psicológicos por temer a reação dos pais, todas essas são questões de gênero, que se inserem em uma lógica fundamentalmente machista e patriarcal.

Tal lógica é desgastante, e afeta a todos. Mesmo os homens, ainda que sejam seus maiores beneficiados. Deles, a sociedade exige demonstrações de força e resistência que não combinam com cuidados com o corpo ou emotividade. Segundo o Centro de Referência da Saúde do Homem, de São Paulo, a cada mês cerca de 60% dos pacientes procuram o local já apresentando enfermidades em estado avançado.

Ser o “homem da casa” é uma responsabilidade adoecedora. Contudo, é sempre importante relembrar que os homens — ainda que possam sofrer com restrições em relação a seu gênero — são ainda privilegiados socialmente, cabendo a eles questionar esses privilégios. Discutir questões de gênero não é apenas retirar privilégios de um grupo, mas é libertar a todos.

Feminismo e enfrentamento
Se gênero é um campo de enfrentamento, a era da internet e das redes sociais torna esses embates mais públicos e frequentes. De maneira que, muitas vezes, o assunto pode parecer ultrapassado e o discurso “vitimista”. No entanto, não é preciso muito para perceber que ainda há tanto a ser discutido. E nem mesmo os direitos já conquistados com anos de luta são pontos pacíficos.

Em dezembro de 2014, o deputado federal do PP-RJ, Jair Bolsonaro, defendeu o pagamento de salários menores para mulheres, frente ao iminente risco de gravidez. “Poxa, essa mulher daqui a pouco engravida e fica seis meses de licença-maternidade. Quem que vai pagar a conta? O empregador. Quando ela voltar, vai ter mais um mês de férias. Ou seja, ela trabalhou cinco meses em um ano.”

De modo parecido, quando a passista Fabiana Vilela desfilou grávida este ano, no carnaval de São Paulo, não faltaram aqueles para botar em xeque a necessidade de dar assento no ônibus ou de deixar a gestante passar na fila do banco. O patriarcado tem dificuldades em abrir mão de qualquer direito, por mais simples que seja.
Lucas_Goulart1aFabiane Simioni, advogada e ativista, defende que é para a resolução de situações como essa que surgem os movimentos feministas. Feminismo não é o contrário de machismo, mas um processo político de transformação da sociedade. “É a ideia radical de que homens e mulheres devem ter direitos iguais, como diz o chavão.” Fabiane não nega as diferenças entre os sexos, mas luta para que estas não se reflitam em hierarquias e posições desiguais de poder. E, no mundo do trabalho, a gravidez é um dos exemplos mais evidentes deste tratamento desigual.

“Ainda hoje temos mulheres que são estimuladas dentro da empresa a programarem a maternidade, em uma política invasiva e coercitiva”, expõe. É o caso de uma empresa de telemarketing de Juiz de Fora, que estabeleceu uma escala de gravidez para suas funcionárias. Quem quisesse ter filhos, deveria obedecer ao período estabelecido pelo local. Na época, o ministro Claudio Brandão, do Tribunal Superior do Trabalho, se posicionou. “O empregador tem o controle do trabalho do empregado, mas não da sua intimidade, da sua privacidade. O empregado não deixa de ser cidadão quando vai trabalhar.”

É por essas e outras que a advogada, que também dá aula em um curso de aperfeiçoamento em Direitos Humanos na UFRGS, sempre chama a atenção de seus alunos para essas temáticas. No entanto, ela deixa claro: ninguém precisa virar ativista ou feminista depois de sua disciplina. “Ainda assim, para entender o feminismo, é preciso fazer um exercício de alteridade. O rechaço a priori é ruim para todos. Ouvir essa vivência pode ser libertador para quem consegue dar o primeiro passo.”

Um processo natural para o homem que simpatiza com a causa das mulheres é buscar o engajamento nos movimentos feministas. Foi o que fez o publicitário cissexual Lucas Rodrigues Koehler, antes de compreender seu papel nesta luta. “Eu sou branco, hétero e homem. Eu não posso assumir o protagonismo desta causa, mas posso ser um apoiador.” A reflexão amadurecida só veio com o passar do tempo. No início, questionava o porquê certos grupos eram tão contrários à participação do homem no movimento. Mais do que isso, tentava dizer para as próprias mulheres o que deveria ser o feminismo e como agir. A paciência e a empatia foram fundamentais para compreender que a melhor forma de ajudar era apoiar de fora. Hoje, faz o papel contrário. É ele quem explica a outros homens o modo adequado de apoiar o movimento.

“A energia que as mulheres gastam explicando para os homens o que eles fazem de errado poderia ser muito melhor empregada empoderando mais mulheres”, propõe Fabiane. Na capa do Facebook da ativista Maria Fernanda Salaberry, uma assertiva parece pôr um ponto final na ideia: “Ninguém pergunta por que os patrões não fazem parte do sindicato dos trabalhadores. Então, por que questionar o motivo de os homens não fazerem parte do feminismo?”.

Relações de poder

Pensar questões de gênero não é simplesmente reconhecer as diferenças, mas identificar a disparidade das relações de poder. É nesse sentido que se diz que este é um campo de constante enfrentamento. No entanto, para a publicitária e ativista Maria Fernanda Salaberry, é mais que isso. “Gênero não é uma guerra. Guerra é quando os dois lados atacam. Gênero é um massacre.” Ao seu lado estão os dados. No Brasil, a cada 10 minutos uma pessoa é estuprada, conforme o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Outra pesquisa, do IPEA, aponta que 88% das vítimas de estupro no país são do sexo feminino.

Nos grupos feministas, é comum a utilização do termo “sororidade”. Diz respeito à relação de fraternidade e solidariedade que deve existir entre todas as mulheres. Com base nisso, Maria Fernanda pontua: “Certa vez ouvi outras feministas dizendo que sororidade é mostrar para as mulheres que elas podem conviver bem com os homens. Não! Dizer isso é uma irresponsabilidade. Existe um risco efetivo”.

Para ela, a questão é levar em conta a socialização. A sociedade forma os homens para dominar e as mulheres para obedecer. Assim, mesmo aquele que não tem o desejo de oprimir acaba o fazendo sem perceber. “Você não pode chegar até a Faixa de Gaza e dizer que todos podem parar de se preocupar e serem amigos, sabendo que os exércitos estão a postos.”

Maria Fernanda milita por um feminismo radical. “Aquele que questiona o patriarcado desde as raízes”, explica ela. No entanto, ainda que sua denominação não derive de “radicalismo”, certas posturas mais extremas impactam mesmo dentro do próprio feminismo. “Muitas dizem que o feminismo radical é muito teórico. Mas não é a teoria que incomoda, é a postura de vida.”

A discussão, segundo ela, diz respeito à hierarquia e à exploração. “A sociedade forma as mulheres para executarem tarefas para os homens. Não só tarefa de educar os filhos, mas de fazer sexo com o cara.” Certas correntes, inclusive, afirmam que qualquer tipo de penetração é uma violência. Propõe então o lesbianismo político, para marcar de vez o afastamento dos homens. Maria Fernanda não segue essa linha, e continua a se relacionar com homens. Ainda assim, reconhece: “O patriarcado é o mais antigo sistema de exploração de todos os tempos. E ele só funciona até hoje porque as vítimas têm uma relação afetiva com seus exploradores”.

Questão de identidade
Fabiane Simione2 - CópiaÍcone do feminismo do século XX, Simone de Beauvoir apontava em um famoso aforismo que não se nasce mulher, torna-se uma. Ao dizer isso, ela se referia ao modo como a sociedade molda o indivíduo dentro do que se espera dele. Tais expectativas mudam com as décadas, e podem ir de uma “gentil e submissa dona de casa” até a mulher independente e empreendedora dos dias de hoje — mas de quem ainda se cobra apartamento limpo e um filho bem educado. Revisões do pensamento de Beauvoir, propostos pela teoria queer, exploram como esta afirmação é válida para todos os corpos e sujeitos.

“De acordo com autores da psicologia do desenvolvimento, é a partir dos quatro anos que a criança passa a ter noção do gênero que lhe é estabelecido. Que existem aqueles tidos como homens, os tidos como mulheres e que cada um exerce papéis diferentes na sociedade”, esclarece Lucas Goulart. E é normalmente nessa idade, também, que a criança começa a perceber as possíveis inadequações. Assim, chegamos à questão de identidade de gênero — a forma como a própria pessoa se reconhece diante da socialização que recebe.

Foi assim para Luisa Stern, da ONG Igualdade. “Eu sonhava em ser mulher quando crescesse. Já me imaginava mulher.” Ela conta que desde a infância sentia sua identidade feminina sendo formada, ainda que para conseguir processar e compreender o que acontecia fosse preciso bem mais tempo. Quando a decisão foi tomada, no entanto, ela a assumiu sozinha e em silêncio. Não contou aos amigos, colegas ou familiares — nem mesmo à sobrinha, com quem morava na época. “Tem a ver com a questão da minha autonomia. Falar com alguém seria como se eu estivesse pedindo permissão para ser assim.” Não era o caso. Luisa é o que sempre foi. E agora, tanto por dentro quanto por fora.

Eric Seger de Camargo foi cursar Educação Física, na UFRGS, para se entender. “Eu fui buscar uma verdade do corpo, que para mim não fechava. Porque havia uma verdade por trás do meu próprio corpo que eu não conseguia entender.” Não encontrou. Ao menos não ali. O curso apenas reforçou estereótipos de masculino e feminino. Frustrado, buscou outros horizontes. Em uma disciplina de Psicanálise e Arte, escreveu um artigo sobre arte queer, inspirado no vídeo The Gender Obsolescence. Nele, homens e mulheres cis e trans desmascaravam-se perante a sociedade. “A pessoa que entregou esse artigo nunca mais voltou. No outro semestre, já pedi que os professores alterassem meu nome na lista para Eric”, relata.

“Para que a pessoa trans possa se desenvolver, é fundamental ter um grupo de pessoas que acreditam em ti e te legitimam socialmente”, reflete. Neste sentido, ele encontrou todo o apoio no NUPSEX, onde atualmente é bolsista de Iniciação Científica. E esta legitimação se dá em um nível muito maior do que o de simplesmente utilizar a colocação pronominal adequada.

“Quando eu digo que quero ser tratado no masculino, espero que as pessoas me tratem como homem. E eu sinto a diferença quando não é para valer. A pessoa me trata de maneira adequada, mas na real parece que está falando com Napoleão Bonaparte”, confidencia Eric. “Algo como: Ah, você é Napoleão? Bom, se você está dizendo eu acredito…”

Disforia de gênero
luisastern2aPara conseguir os tratamentos hormonais ou o encaminhamento para cirurgias pelo SUS, as pessoas trans no Brasil devem passar por atendimento em uma das quatro Unidades de Atenção Especializadas credenciadas. O Hospital das Clínicas de Goiânia (GO) — cujo projeto está em vias de ser encerrado, o Hospital das Clínicas da FMUSP (SP), o Hospital Universitário Pedro Ernesto (RJ) e o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (RS). Neles, dependendo da disponibilidade do local, é possível realizar não apenas a hormonioterapia e a redesignação sexual, mas também a tireoplastia — para feminilização da voz — e a mamoplastia masculinizadora para os seios.

Em Porto Alegre, esse tipo de trabalho no HC é realizado dentro do Programa de Transtorno de Identidade de Gênero, o Protig. O nome já está sendo mudado, mas ainda segue a antiga forma de se relacionar com a transexualidade — como um transtorno, uma parafilia, da mesma forma que a homossexualidade foi tratada durante muitas décadas. O novo Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais norte-americano – DSM-5, traz mudanças a esta visão, propondo o termo “Disforia de gênero”. As mudanças vêm ocorrendo, mas de forma lenta.

“Cada vez mais, na psicologia, estamos vendo a questão da identidade como sendo autocentrada”, explica Lucas. “Ou seja, se a pessoa se coloca como homem ou mulher, é isso o que faz da pessoa homem, mulher, ou pessoa não binária.” Aquele que deseja se submeter ao processo transexualizador, ou mesmo solicitar juridicamente a mudança de seu nome social, deve apresentar um laudo psicológico atestando sua “disforia”.

Lucas Goulart atua constantemente nesta área, graças ao projeto Direito à Identidade: Viva seu Nome — uma parceria com o NUPSEX, a Igualdade e o G8-Generalizando, grupo de assessoria jurídica da UFRGS. Ele relata que seu parecer não é psicologizante, e explicamos como a pessoa construiu sua vida daquela maneira e como a mudança de nome pode minimizar a situação de vulnerabilidade. Ainda assim, reconhece que não é a melhor maneira. “Nenhum cis precisa passar por alguma avaliação para atestar ser homem ou mulher”, problematiza. “Nós tentamos não patologizar, mas ainda é tratado como doença. A melhor solução seria não necessitar de parecer algum.” A solução, no entanto, não parece estar próxima. Isto porque, com exceção de casos específicos, com o SUS não é possível realizar cirurgias plásticas por motivo estético. Por isso, certa patologização acaba sendo necessária.

Mas nem todos os pareceres são assim. Para a realização da cirurgia de redesignação sexual pelo SUS, o órgão exige pelo menos dois anos de tratamento psicológico. Correm, entre os pacientes desses centros, críticas sobre a exigência de um comportamento idealizado de homens e mulheres por parte dos pacientes. “Em alguns hospitais de referência, a equipe médica exige que a mulher trans tenha aquele ar de Amélia, de dona de casa, enquanto aqui fora a mulherada quer se livrar deste estereótipo”, relata Luisa. Muitas vezes se cobra da mulher trans até mesmo um jeito de sentar adequado, como se fossem estes signos capazes de dizer o que é ou não ser mulher.

Em Porto Alegre, segundo Eric, o clima poderia ser mais acolhedor. “Não é como se eles estivessem te ouvindo, mas te interrogando. Eles sempre ficam perguntando sobre a sua infância, como se tentassem descobrir o que houve de errado.” Eric entende que a prática vem dos protocolos da psiquiatria, e não dos profissionais em si, mas sugere que estas práticas sejam desafiadas.

Outras críticas dizem respeito ainda à cobrança por uma heteronormatividade. Eric conta que se relaciona com homens e mulheres, mas tem uma preferência. “Eu sou mais gay, na real, mas eu digo que sou bi.” Eric já relatou a uma assistente social sua preferência. No entanto, quando outra residente preenchia seu questionário, perguntou quando havia sido sua última relação sexual com uma mulher. “Com mulher?”, respondeu, deixando o subtexto claro. Ela confirmou. “Não passava pela cabeça dela outra possibilidade. Se eu digo que sou homem, então tem que ser com meninas, né?”

Do contato que já teve com outros pacientes, ouviu que o teatro é a melhor solução. Sente-se, por vezes, como se aqueles que seguem a cartilha do homem ou da mulher ficam mais próximos da cirurgia. “É uma coisa meio Big Brother, meio Jogos Mortais”, sintetiza.

A psicóloga e pesquisadora do Protig, Bianca Machado Borba Soll, relata que muitas vezes os pacientes já chegam ao Programa com um discurso pronto. “Eles leem na internet que para fazer a cirurgia é preciso agir de tal jeito, mas aqui nós seguimos critérios diagnósticos. Nenhum critério diz que é preciso ser heteronormativo, mas diz em relação à identidade.”

Segundo ela, esta triagem é importante para não encaminhar para a cirurgia alguém que manifesta insatisfação com o corpo, mas que em verdade não deseja a redesignação do sexo. Pode ser fruto de um surto, por exemplo. “Os critérios falam de um desconforto com suas características sexuais, do desejo de ter características de outro sexo biológico.” Algo que seja realmente grande, a ponto de a pessoa decidir se submeter a uma cirurgia de risco. “Às vezes há quem nos procure para ‘retirar o pênis’, mas relata que ainda sente prazer com ele, e o utiliza para relações sexuais. Então, será que a intervenção cirúrgica é realmente o melhor caminho?”

Para Lucas Goulart, nossa sociedade ainda tem uma visão muito limitada e binária de gênero e sexualidade que é ligada aos genitais. “E isso faz com que essas pessoas não consigam acessar os seus direitos, seja no dia a dia, seja no mercado de trabalho.” Isso se comprova ao observar as estimativas. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA, 90% das travestis e transexuais no Brasil estão no mercado da prostituição.

“Uma boa iniciativa se vê em São Paulo, onde o governo está oferecendo bolsa para travestis estudarem. Afinal, muitas precisam largar a escola porque são expulsas de casa e precisam trabalhar. E como não têm oportunidades, a prostituição acaba se tornando o único caminho”, problematiza Lucas. Para ele, as políticas públicas brasileiras estão avançando — mesmo com a eleição do congresso mais conservador das últimas décadas. “Mas, é claro, enquanto pessoas estiverem morrendo, os diálogos sempre serão muito vagarosos.”

Linhas cruzadas
travestimarxistaNeste campo tão movediço, corpos e sexualidade se misturam na construção da identidade de gênero que problematiza os binarismos tradicionais. Problematizam, mas não rompem com eles, pois ainda há a diferenciação entre masculino e feminino. No entanto, existem aqueles que alegam se identificar com os dois gêneros. Ou então com gênero algum. Contra o binarismo, vertentes discutem o rompimento da barreira homem e mulher. Pensar em indivíduos e seres humanos, sem divisões estanques.

O Centro de Equidade de Gênero da Universidade da Califórnia, em Berkeley, propõe: “Uma pessoa cuja identidade de gênero não é nem homem nem mulher está entre os sexos ou além, ou é uma combinação de gêneros”. E conclui: “Algumas pessoas não binárias se colocam sob o guarda-chuva dos transgêneros, enquanto outras não”. O reconhecimento do gênero neutro vem aos poucos. Em países como Alemanha e Austrália já é possível registrar uma criança sem especificar o sexo entre masculino e feminino. No Facebook da Argentina, o usuário pode se identificar entre mais de 50 opções de gênero e orientação sexual.

Maria Fernanda Salaberry questiona tamanha diversidade. Para ela, por vezes, é uma questão de exagero. “Você pode deixar que as pessoas transitem entre dois polos, ou acima, ou dos lados. E aí se você se diz abacaxi, você é abacaxi.” No entanto, lembra ela, “propor a extinção das divisões binárias não discute a hierarquia desses lugares”. Ela também se preocupa com as questões práticas. Como fica a questão da identidade de gênero em um hospital? Ou em um presídio?

Eric, ainda que se reconheça como binário, compreende como esta divisão pode não fazer sentido para algumas pessoas. “Tem gente em que o selo do gênero simplesmente não gruda.” Para ele, é preciso estar aberto para compreender as singularidades de cada um. “Alguém que tem o privilégio de não precisar dizer o tempo todo o que é, não pode repetir certas violências”, defende. Para ele, “é uma agressão fortíssima dizer que uma pessoa não é aquilo que ela está dizendo”.

Esse tipo de violência é frequentemente denunciado por homens e mulheres trans, especialmente no que envolve as chamadas TERFS — sigla em inglês para Trans-Exclusionary Radical Feminists. São grupos dentro de vertentes radicais que excluem, agridem e silenciam mulheres trans. Em dezembro passado, por exemplo, diversas ofensas foram pichadas nos banheiros femininos da USP. As mensagens ameaçavam: “Vamos cortar sua pica fora”, e marcavam posição: “Não vamos deixar os machos ocuparem nossos espaços”. Uma das mais simbólicas dizia: “Ser mulher não é usar nossos sapatos”.

Para Eric, há muito a se perder na exclusão das mulheres trans dos movimentos feministas. “Se elas dessem voz a estas pessoas, poderiam entender o que ocorre com uma mulher quando esta sofre uma socialização masculina, e ainda assim abraça a vida de mulher”, propõe. A mesma rusga destes grupos, no entanto, não é vista em relação aos homens trans. Com estes o problema é outro. “Quando elas dizem que sua sororidade não está com as mulheres trans, mas está com os homens trans, é como eu falei sobre Napoleão. Na verdade, elas continuam nos vendo como mulheres.” Esta é a luta de Eric, a do reconhecimento.

– E o que é ser homem, para você?

Eric pensa um pouco. Encara a mesa do restaurante, e alisa o queixo sob a barba escanhoada na forma de cavanhaque. Por fim, responde.

“Eu não consigo dizer o que é ser homem”, reflete. “Eu apenas sei.”

Invisible eyewitness to History – Latin American Refugees and the struggle to start again

Andriolli Costa
Published: 10.15.2013
IHU On-Line

They enter the place in silence, almost asking for permission. There’re six of them. Colombians. With a dark skin, and quiet manners, the group walks though Pompeia church, in the city of Porto Alegre, Brazil, with evident joy, showing with satisfaction the newly documents signed by the Brazilian Federal Police. Today, they’re officially and legally considered refugees. And that’s exactly why we’ll preserve their identities and change their names in this report.

According to data published by the National Committee for Refugees – CONARE, Brazil is home to more than 4500 refugees from 77 different countries – most of Colombian origin. This, of course, taking into account only those who had the recognized status, not those who are still asylum seekers. The recent tragedy in Lampedusa opened Brazilian eyes to the unsustainable situation of those refugees worldwide, but sometimes we forget the very insecurity experienced by our neighbors.

Emílio, 35 years old, however, can’t forget a thing. The farmer brings in his face the terrible scars of the violence involving the southern and the southeastern side of Colombia. In one of the several attacks suffered by him after refusing to serve the Guerrilla, grenade shrapnel lacerated his nose. The man reported the situation to the police attack after attack. He was given a document from the Colombian government which confirmed the persecution and asked for constant protection for him, his wife and the three children. Help never came.

“The government expects us to use the paper to stop bullets,” disdains Ramon, 45. He, who’s been a sailor for over two decades, was also harassed by the Guerrilla, but for strategic military reasons. “They wanted us to take the drugs and weapons from Colombia to Mexico by the sea. This is how the guerrillas maintains itself “, states him. After the initial refusal, the group killed the captain of the boat where Ramon served as immediate and offered him a bag with 25 packs of $ 7,000 each. The man didn’t even think. He left the money bag behind, and when the group returned to plan the drug route, Ramon returned all the money.

“You can’t make a fool of those people, my friend. Either you’re with them or against them”. The sailor was given only one day to escape. He left his city and spread friends and family members through the Country, as far away and as quickly as possible. It was just in time. “They blew up my house and destroyed my motorbikes, which I loved the most. But this we can buy again. Security can’t be bought”.

Emilio and Ramon didn’t know each other in Colombia and neither had been together in Ecuador, where they applied for asylum in Brazil. One lived on earth, in the farm, and the other was friend with the sea. Different words, and different lives, joined by the same tragedy.

The Guerilla
The internal conflict in Colombia began to gain its current face from the second half of the twentieth century, when the peasant guerrillas, influenced by the Cuban Revolution, led to the entity known today as the Revolutionary Armed Forces of Colombia – People’s Army, or FARC -EP. Founded in 1964, the group received support from the Colombian Communist Party, starting almost from the beginning, to act in military and political fronts. Since the 1980s, the FARC uses drug traffic, kidnapping and “taxes” (vacuna) forcibly collected from residents, business owners and marketers in the region to finance their actions.

Emilio was one of the victims of vacuna. In 2009, he and his family lived in the countryside of Santiago de Cali, the third largest city in Colombia, with over 2 million inhabitants. Natural from Buenaventura, 145 km away, he decided to spend the holidays with family. When he returned, then came the surprise: its site had been claimed by the guerrilla. To continue living in it, he had to pay a fee which, he knew, would increase every month. “When I refused, they tried to recruit me. They said I had the physique, that I could get to a command post. They left and gave me three days to decide”, he recalls. The idea was also to recruit his two older sons: Pablo, 16, and Esteban, 14. Emilio, too, didn’t even considered the alternative. He took the children from school and left the city with his wife Maria, 38, and Adrian, the youngest, with only three years old. No one could be left behind. Otherwise, they get assassinated or enslaved by the guerrilla, taken to do forced labor until the end of life.

Since the beginning of the year, it was approved a law that aims to return between 1.5 and 2 million hectares of land to those displaced during the internal conflict in Colombia. The estimative is to compensate more than 4 million victims of guerrilla groups, paramilitaries and law enforcement officials since 1985, and that about 400 thousand families displaced since 1991 should be restored. Emilio didn’t want to wait and see. “You can’t pay anything to the dead ones”, says laconically.

“Colombia has three main problems,” explains Ramón. “The Guerrilla, the paramilitaries and the army.” For the sailor, the violence instituted by the national military forces is what refuels the other groups. “If you have a friend, relative or even a customer who joins the guerrilla or the militia, the army publicly accuses you of also being a supporter of the group”. The ones in this situation are investigated by legal forces, but also have to deal with the harassment of the opposing force. And right-wing paramilitaries may be as violent as the guerrillas themselves. Or more.

A report published this year by the NGO “Corporación Nuevo Arco Iris” says that since 2008, the violent actions carried out every year by paramilitary groups and neoparamilitares have occurred in greater numbers than those held by the FARC. Another estimate indicated by the document is that such groups would count with 11,000 active members, against 8500 of Revolutionary Forces and 2200 from the National Liberation Army – ELN – which is another guerrilla group, of Guevarist orientation. In its origin, the paramilitaries were groups made by former officers and policemen hired and funded by big business, farmers or politicians. During the Álvaro Uribe’s government (2002-2010), several demobilization actions of these groups were performed. Today, rearranged, they created neoparamilitary groups. And the same way as the FARC, they make profit from drug traffic in the region.

The shelter

For over two years, Emilio and his family became nomads within the country. It didn’t take long for them to be discovered by the guerrillas, so they were always in the go. “In the first contact, they took our documents to hinder our movement over the country,” he says. Only a lot later Emilio was informed about the refugee status and was able to flee to Ecuador. Once in Tulcán, in the borderline with Colombia, he requested by the country the recognition of the refugee status. Even with all the documents proving persecution, approval was refused.

To further complicate the story of the family, even in another country, the five were located by the persecutors. “The Guerrilla has a great system of informants. It may be a police officer, a trader, or even your own family”, he states. It was only then that the Colombians sought UNHCR, who mediated the group departure from Ecuador. Since then, there were nine months of waiting until the final coming to Brazil.

Embraced with her children, Maria remembers that in the most desperate days, she frequently thought of suicide. The guerrillas had murdered his sister, and they knew what they were capable of. Moreover, life in Ecuador was not easy. “I was getting crazy. Neither of we’re receiving here, in Brazil, we had there. Ecuadorians are very bad people”, grieves.

“In that Country, if you’re Caucasian, they treat you very well. But black people have no access to the basic rights”, says Pablo, the eldest son of the couple. Ramón, on the other hand, had no problem in his staying in the country. The sailor profession has high demand, and the man was able to enter Ecuador with a job offer. Once there, he moved to an area with a lot of black people and requested refuge. He was accepted.

Karin Wapechowski, the National Programme Coordinator of Solidarity Resettlement of the Antônio Vieira Association – ASAV in Porto Alegre, said the family impression is justified. “We’ve already heard of women who were forced to give birth on the street, in front of the Ecuadorian hospital. They weren’t given permission to enter for being Colombian”. Karin, which is one of the responsibles for the arrival of Emilio and Ramon to Rio Grande do Sul, explains that it is the prerogative of each country to accept refugees or not, without justification. “When the mediation is conducted by UNHCR, the agency presents the cases to various countries. When they’re accepted, then begins a series of interviews to confirm the status of refugee”, he explains. Ramón, for example, says his shelter request was accepted by Canada, Norway and Brazil. He chose Brazil, both for the weather and for the fear of prejudice.

Those who are accepted as refugees and become part of the resettlement program receive a monthly income for a year, which varies according on the number of family members. Only in Rio Grande do Sul, 268 people are resettled, according to Wapechowski. After four years of stay in the country, the refugee may make a new request and become just a foreigner resident in Brazil. “The difference between a migrant and a refugee is that with the refuge, the country is committed to providing legal protection and physical person”, he says. During the first year, the person must remain in the city where it was allocated, but is then free to go to any part of the country.

The future
Newcomer to a city in the interior of Rio Grande do Sul, Ramón said he felt completely at ease in Brazil. However, he’s counting the days to see the sea again. After all, that’s where he belonged for more than two decades, and where he was able to make a living. “As a sailor I received $ 3,500 per month, and always wore brand t-shirts. Today, I’m depending on donations to have what to wear”. Meanwhile, colleagues who accepted the invitation of Guerrilla are earning thousands of dollars per month. Does he regret it? “Not even a little. At least I can sleep peacefully. ”

The personal vanity is not the only reason that encourages the sailor to seek a source of personal income. “I lived in the sea. I spend months, sometimes almost a whole year away from my daughters. Money was what linked me and my family”, he recalls. Today, without the resources previously available, Ramón feels the fragility of the bond that he had built and the weight of responsibility. Without being able to fulfill the role of home provider, he reflects on a new approach. “Today they depend on me both emotionally and economically,” he adds.

Emílio and his family, on the other hand, have already decided to stay. The kids also liked the city. They say Porto Alegre looks like an European city. Luck, anyway, seems to be turning to their side. In less than eight days in Rio Grande do Sul, both Ramón and Emilio were able find a job. The municipality driver himself, who brought them to their new homes, recommended the Colombian to a friend businessman. “There is no formal system of incentive to employ refugees. What exists is a network of solidarity, totally informal and spontaneous”, states Karin. Tranquility, happiness, desire to move forward. That’s all the six Colombians hope for the future.

In the interview room, the small Adrian finds and immediately unwraps a package with a small toy truck. “Whose is it?” Asks the already embarrassed mother. “It is God’s, he can stay with it”, answered one of the sisters of the Pompeia Church. Far from the terrible family memories, the boy plays. Roll the plastic wheels the table; stacks the multicolored cattle in the dump of the truck; makes the noise of horn with his mouth. It is a day of peace. Life just goes on.

Estupro no Campus – O que deu errado? Rolling Stone e a anatomia de um erro jornalístico

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Imagem original da matéria sobre o estupro. Arte de John Ritter

Por Andriolli Costa

Em novembro de 2014, a revista Rolling Stone, após meses de apuração, publicou uma grande reportagem sobre estupros dentro do campus da Universidade de Virgínia. Tinha como pedra fundamental o relato de “Jackie”, uma fonte que teve a identidade preservada e que contava uma terrível história. Ainda emocionada, relatava em ricos detalhes como havia sido violentada por sete garotos durante uma festa da fraternidade Phi Kappa Psi. Uma história chocante e emblemática, como a repórter foi pautada para encontrar. Era perfeita para a revista. Pena que era totalmente inventada. Pena que ninguém checou. Confira o texto original (já substituído) no Internet Archive.

A verdade veio a tona pouco tempo depois, quando outros veículos começaram a fazer suas próprias investigações e apontaram inconsistências no caso. Mesmo a repórter que conduziu as entrevistas já não se sentia confiante quanto à sua apuração. Como resposta, a revista procurou a Universidade de Columbia, que produziu um “relato jornalístico sobre uma falha jornalística”. Três pesquisadores analisaram todo o material coletado durante a apuração da repórter Sabrina Rubin Erdely, entrevistaram os profissionais envolvidos e – é claro – fizeram a apuração direito. E produziram este relatório, publicado na íntegra na Rolling Stone neste domingo (05/04).

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Imagem que acompanha o relatório

O relatório
“Registros da revista e entrevistas com os envolvidos mostram que a falha da reportagem ‘Um estupro no Campus’ não ocorreu devido à falta de estrutura. O problema foi de metodologia”, apontam. A repórter foi pautada para encontrar um caso que se encaixasse na narrativa pronta esperada pela revista. “Havia outros casos, mas nenhum tão dramático e chocante”, destaca a repórter. Realmente, nenhum.

Temos então uma narrativa preenchedora de aspas, que se basta no jornalismo declaratório com um mínimo de apuração. A entrevistada, Jackie, menciona pessoas, mas não fornece os seus nomes completos e nem seus contatos. Erdely, a repórter, empaca nesse detalhe. O relatório sugere que qualquer pesquisa no Facebook ou contato com outros alunos da turma poderiam ter ajudado a encontrar estas pessoas.

Ao invés disso, a publicação compra o discurso de Jackie, que faz citações indiretas (de amigos, membros da Pi Kappa Psi e representantes da Universidade). A narrativa incorpora as citações, fazendo crer que a revista ouviu os envolvidos, o que não ocorreu. Columbia chama atenção para a construção textual, que mascara os furos de apuração por meio de uso de pseudônimos ou de puros artifícios de linguagem.

Para não correr o risco de perder a colaboração de uma fonte tão rica, e que ainda manifestava o trauma de uma suposta agressão, a repórter evita confrontar a entrevistada. Uma apuração básica poderia verificar se as pessoas de quem a menina falava sequer existiam, ou faziam parte das instituições acusadas. Mas a história era boa demais. No caso da Universidade e da Fraternidade, a repórter entrou em contato pedindo genericamente um “comentário sobre uma denúncia de abuso”, sem dar detalhes. Recebeu – e usou – uma resposta evasiva padrão.

Orientações

Arte representando a fraternidade Phi Kappa Psi, acusada injustamente pela reportagem como local dos estupros

Arte representando a fraternidade Phi Kappa Psi, acusada injustamente pela reportagem como local dos estupros

O relatório chama a atenção para a necessidade de ouvir as partes envolvidas. Não era apenas questão de justiça, mas uma ferramenta de verificação que pode produzir novos dados. Alerta também para a necessidade de equilibrar a relação com a vítima com a verificação de dados. Os autores pontuam a necessidade da Rolling Stone avaliar o uso de pseudônimos e, por fim, de desenvolver um ambiente mais rígido de controle de erros.

Esta última recomendação se deve ao fato de repórteres e editores, com décadas de experiência, terem optado por desconsiderar todas as instâncias de verificação – até mesmo as sugestões do departamento de apuração. Jackie se recusava a dar o nome de seu paquera, que teria dado início ao estupro, por ainda “ter medo dele”. No entanto, menciona que contou o caso a três amigos logo depois, e que eles a desencorajaram de levar a denúncia para a frente. “A decisão de não entrar em contato com estas pessoas foi feita por editores muito acima de mim”, respondeu Coco McPherson, chefe do departamento de apuração da revista.

Resultados

Jornalismo declaratório, que ignora o princípio de ouvir o outro lado

Jornalismo declaratório, que ignora o princípio de ouvir o outro lado

O resultado da reportagem fracassada foi, dentre vários outros, o desserviço prestado quanto à importante questão dos abusos sexuais nas Universidades, “divulgando a ideia de que muitas alegações de estupro se tratam de invenção”. O relatório, por sua vez, converteu-se numa peça didática que elucida a importância do jornalismo levado a sério. E para a Rolling Stone, o que significa? Em termos de política editorial, possivelmente nada.

“Os editores sênior da Rolling Stone são unânimes em acreditar que a falha na reportagem não exige nenhum tipo de mudança em seu sistema editorial. ‘Não acredito exatamente que devemos revisar nossos processos, e não penso que precisamos necessariamente instituir novos modos de fazer as coisas”, afirma Will Dana, o editor executivo. “Só precisamos fazer o que sempre fizemos, e nos certificar de não errar novamente”. Uma explicação totalmente tautológica, como pontua Jay Rosen.

O distanciamento é uma ferramenta importante para identificação de um problema, assim como a busca por uma visão externa às rotinas. No entanto, isolar o erro não o corrige. Para isso é preciso saber ouvir os dados, e suas interpretações. Vejamos se era esse o objetivo da revista, ou apenas uma tentativa de gerar um capital simbólico em cima de sua própria falha.

Fernando Carneiro: Agrotóxicos e agroecologia, paradigmas diferentes em disputa

“Imagina um Brasil que ao invés de 150 bilhões para a produção do agronegócio, destinasse esse valor para a agricultura agroecológica. Isso implicaria numa mudança radical dessa situação. Então, o que precisa é uma mudança política”, afirma o biólogo.

THEMENBILD/ARCHIVBILD: PESTIZIDE / PESTIZIDVERBOT / PFLANZENSCHUTZMITTEL

Por Patricia Fachin e Andriolli Costa
Publicado em 10/05/2015
Instituto Humanitas Unisinos

A nova composição do Congresso Nacional e a chegada de Kátia Abreu ao Ministério da Agricultura estão deixando alguns pesquisadores da área da saúde e do meio ambiente, “preocupadíssimos”. Entre eles, Fernando Carneiro, da Associação de Saúde Coletiva – Abrasco, que atualmente coordena o GT de Saúde e Meio Ambiente da instituição. Segundo ele, as recentes mudanças no quadro político indicam que “as perspectivas de uma desregulamentação na legislação dos agrotóxicos são enormes”. Entre as alterações prováveis, ele menciona a possibilidade de “que se quebre todo o marco regulatório para favorecer a entrada de agrotóxicos no Brasil” e “de que se retire o papel da Anvisa e do Ibama para concentrá-los no Ministério da Agricultura, que já tem o comando do agronegócio”.

Na avaliação do pesquisador, a nomeação de Kátia Abreu para o Ministério da Agricultura “é uma escolha parecida com a que Lula fez quando escolheu seu primeiro ministro, Roberto Rodrigues. A diferença é que Kátia Abreu é uma liderança com um trânsito político e ela tem projetos que passam desde a privatização da Embrapa, como a negação da reforma agrária como pauta para o país”.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line via Skype, diretamente da Universidade de Coimbra, em Portugal, Carneiro também comenta as reações de resistência da sociedade civil ao uso de agrotóxicos no país. De acordo com ele, “a resistência mais organizada está se dando através da Campanha Nacional Contra os Agrotóxicos e pela Vida, que foi lançada no Dia Mundial da Saúde há três anos, e reúne mais de 200 entidades. Trata-se de uma resistência interessante, uma grande novidade, porque além de reunir movimentos sociais, reúne ONGs e órgãos de Estado como a Fiocruz e o Incra. Essa é uma grande força em termos de uma grande campanha da sociedade civil”.

Fernando Carneiro é é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, especialista em Vigilância em Saúde Ambiental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Ciências da Saúde – área de Concentração de Saúde Ambiental pelo Instituto Nacional de Salud Pública de México e doutor em Epidemiologia pela UFMG. Atualmente é Pós Doutorando do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, tendo como orientador o Prof. Boaventura de Sousa Santos.Possui experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em saúde e ambiente e saúde no campo, atuando principalmente junto aos movimentos sociais na luta por melhores condições de vida.

Foi consultor do Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Saúde e servidor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Coordenou a área de Epidemiologia Ambiental da Secretaria de Saúde de Minas Gerais e atuou como Coordenador Geral de Vigilância em Saúde Ambiental do Ministério da Saúde. Foi professor e Chefe do Departamento de Saúde Coletiva da UnB. Agora é pesquisador da Fiocruz Ceará e do NESP UnB. Atualmente também Coordena o GT Saúde e Ambiente da Abrasco e o Observatório da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, Floresta e das Águas – Teia de Saberes e Práticas (OBTEIA).

Confira a entrevista.

pqfernando_carneiro1IHU On-Line – Existe resistência da sociedade civil aos agrotóxicos? Ela é representativa?
Fernando Carneiro – Existe uma resistência que é histórica do movimento de agricultura alternativa, que foi bastante representativa nos anos 1980, e que gerou a lei de agrotóxico do Brasil, considerada moderna para os parâmetros atuais. A resistência mais organizada está se dando através da Campanha Nacional Contra os Agrotóxicos e pela Vida, que foi lançada no Dia Mundial da Saúde há três anos, e reúne mais de 200 entidades. Trata-se de uma resistência interessante, uma grande novidade, porque além de reunir movimentos sociais, reúne ONGs e órgãos de Estado como a Fiocruz e o Incra. Essa é uma grande novidade em termos de uma grande campanha da sociedade civil.

IHU On-Line – Por que, mesmo com tal resistência, o país permanece líder no consumo de agrotóxicos?
Fernando Carneiro – Existe uma escolha por parte dos últimos governos, principalmente dos federais, pela opção do agronegócio. Na medida em que prioriza que a balança comercial seja equilibrada pela exportação de commodities, o governo acaba fazendo uma opção pela reprimarização da economia. Isso aconteceu e vem crescendo desde o final do governo Fernando Henrique, governo Lula e Dilma. Esse é um processo muito perigoso, porque há uma desindustrialização e um incentivo a commodities minerais e agrícolas, que têm um valor muito menor na relação de trocas do comércio internacional. Então, o Brasil ficou dependente desse modelo, que é baseado no grande uso de insumos químicos. A própria monocultura é um sistema desequilibrado, que exige muito agrotóxico. Mas muitas pessoas estão ganhando com a implantação desse modelo. Como você pode ver, a presidente da Confederação Nacional da Agricultura hoje é a Ministra da Agricultura. Isso demonstra que pessoas ligadas ao agronegócio já controlam o aparelho do Estado, financiamentos, e aí fica uma luta entre Davi e Golias.

IHU On-Line – Como compreender a escolha de Dilma pelo nome de Kátia Abreu para o Ministério da Agricultura?
Fernando Carneiro – É uma escolha parecida com a que Lula fez quando escolheu seu primeiro ministro, Roberto Rodrigues. A diferença é que Kátia Abreu é uma liderança com um trânsito político e ela tem projetos que passam desde a privatização da Embrapa, como a negação da reforma agrária como pauta para o país. À medida que temos uma ministra que tem colunas em jornais, ela passa a ter uma capacidade de influência maior do que tinha o ministro anterior, que também era ligado ao mesmo setor.

Nos últimos anos a agricultura no Brasil tem sido atrelada ao agronegócio, mas agora chegou ao poder a representante mais poderosa do agronegócio no Brasil.

IHU On-Line – Ainda há falta de informação sobre os danos causados pelos agrotóxicos, que levam a uma maior disposição a aceitar os riscos de seu uso tanto por produtores quanto por consumidores? Como as campanhas agem para resistir ao agrotóxico?
Fernando Carneiro – Circula pouca informação sobre os riscos que os agrotóxicos podem causar. O máximo que já vi na televisão foram orientações sobre lavar as frutas e verduras antes de consumi-las. Mas sabemos que existem agrotóxicos que são sistêmicos e somente a lavagem dos vegetais não é suficiente para eliminar as substâncias tóxicas.

Não há, em contrapartida, por parte do Estado brasileiro, um investimento em campanhas de informação. Quando chega o carnaval, há uma série de campanhas sobre os riscos da Aids, mas nunca existiu uma campanha sobre os riscos do uso de alimentos contaminados por agrotóxicos pelo Ministério da Saúde.

A novidade para este ano é o lançamento de uma cartilha informativa sobre os riscos dos agrotóxicos. Acabei de participar da revisão técnica dessa cartilha do Programa Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos. Esse programa faz parte do Plano Nacional de Agroecologia e quem está conduzindo a elaboração da cartilha é a Articulação Nacional de Agroecologia. A Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco e a Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz também estão apoiando esse processo de divulgação da cartilha, que será amplamente distribuída no país.

IHU On-Line – A cartilha será divulgada para toda a população, ou inicialmente entre os agricultores?
Fernando Carneiro – Inicialmente a tiragem é da ordem de dez mil cartilhas, e o público inicial serão os agricultores, mas acreditamos que posteriormente ela possa ser distribuída para os profissionais de saúde. À medida que conseguirmos mais apoio, pretendemos ampliar a distribuição.

Study-Links-Pesticides-to-High-Depression-RatesIHU On-Line – Por que o governo, e especialmente a Anvisa, demoram e resistem tanto para banir substâncias que já são proibidos em outros países?
Fernando Carneiro – Essa situação deixa qualquer cientista indignado. As patentes recebem um registro que é eterno, e mesmo quando começa a se levantar evidências de que os agrotóxicos podem causar danos à saúde, as empresas criam dificuldades para dificultar o processo de reavaliação dos produtos que a Anvisa faz. Quando a Anvisa proíbe o uso de alguma substância, as empresas entram na Justiça contra o órgão, ou seja, judicializam os processos, o que os torna ainda mais morosos. Essa tem sido a postura das empresas, o que tem dificultado o trabalho de órgãos como a Anvisa.

Para você ter uma ideia, depois que a Anvisa proíbe o uso de agrotóxicos, o órgão ainda tem de dar um tempo para as empresas acabarem com o estoque dos produtos no Brasil. Isso é contrassenso: se o agrotóxico ser proibido, como é possível permitir que ele ainda seja utilizado no país durante um tempo?

IHU On-Line – Recentemente você declarou que a produção ecológica tem condições de alimentar a população com qualidade. Ao afirmar isso, quer dizer também em quantidade? Em termos de produtividade, o sistema convencional poderia ser plenamente substituído pelo agroecológico?
Fernando Carneiro – Atualmente os eventos nacionais da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) reúnem anualmente mais de 4000 pesquisadores que mostram as evidências da capacidade produtiva da agroecologia. Na verdade estamos falando de uma mudança de paradigma, e não apenas de uma questão técnica, ou seja, estamos falando de uma mudança de modelo que não só não usa veneno, como também distribui melhor a renda e, portanto, promove a equidade social. Se fizermos uma análise como um todo, a agroecologia acaba sendo mais eficiente, porque o agronegócio, para funcionar, precisa, de fato, de financiamentos públicos, e usa uma quantidade enorme de insumos que são responsáveis por 30 ou 40% dos gastos da produção.

Agora, imagina um modelo de agricultura que elimine esse gasto de 40% com agrotóxicos. Há relatórios da ONU para a alimentação que mostram isso. Outro exemplo que nos ajuda a entender essa questão em termos estatísticos é o censo agropecuário do IBGE, que indica que a agricultura familiar já é responsável por alimentar 70% dos brasileiros. Isso demonstra que a produção de alimentos não está associada à produção em larga escala. Tanto que a produção brasileira em larga escala tem servido para alimentar animais na China e nos EUA. Existe aí um discurso falacioso do agronegócio de que eles produzem alimentos para acabar com a fome. Isso é mentira.

IHU On-Line – Frequentemente vinculamos o uso de agrotóxicos aos grandes latifúndios, mas os pequenos produtores também são grandes utilizadores destes produtos, o que se reflete na dificuldade de uma produção agroecológica devidamente certificada. O que falta para que o uso de tais produtos seja minimizado em favor de tecnologias sociais?
Fernando Carneiro – Imagina um Brasil em que o que se investe no agronegócio via Embrapa, fosse investido para desenvolver técnicas para a agroecologia. Imagina um Brasil que ao invés de 150 bilhões para a produção do agronegócio, destinasse esse valor para a agricultura agroecológica. Isso implicaria numa mudança radical dessa situação. Então, o que precisa é uma mudança política.

IHU On-Line – Nos supermercados, consumidores costumam dizer que não optam por alimentos da agricultura ecológica por serem mais caros. O valor agregado de uma produção agroecológica ainda não é percebido?
Fernando Carneiro – Existe um nicho de mercado, que é bastante elitizado, que está presente em grandes redes de supermercados, que faz com que os alimentos orgânicos sejam muito caros. Por isso a nossa recomendação é de que as pessoas procurem as feiras agroecológicas, como as da reforma agrária, e comprem diretamente dos produtores. O Instituto de Defesa dos Direitos do Consumidor – IDEC tem, em seu site, um mapa das feiras agroecológicas do Brasil, no qual o cidadão pode descobrir onde tem uma feira mais próxima da sua casa.

IHU On-Line – Como evitar que o discurso agroecológico, que é essencial, não seja dominado pelo marketing verde – justificando preços muito acima da expectativa para o consumidor final?
Fernando Carneiro – Esse é um risco: a economia verde. Estamos num sistema capitalista que tenta aproveitar todas as chances para lucrar. Muitas empresas de agrotóxicos já estão se preparando para um novo momento e estão diversificando suas linhas de produção para produzir produtos de controle biológico. Então, é importante que esse processo esteja presente nas discussões dos movimentos sociais com a sociedade e a academia para buscar desenvolver tecnologias que ajudem no empoderamento dos produtores e na situação econômica deles, e não criar formas de deixá-los mais dependentes.

O que as grandes empresas criam são tecnologias que fazem com as pessoas fiquem mais dependentes delas. Essa é a grande armadilha da lógica da economia verde. Temos de romper com essa lógica e fazer uma mudança do modelo. Ao invés de concentrar renda e tecnologia, temos de buscar um modelo de agricultura que distribua renda e que faça com que as tecnologias sejam acessíveis. Esse é o caminho para sair do impasse da economia verde.

IHU On-Line – Quais as culturas em que há maior uso de agrotóxicos?
Fernando Carneiro – Nos últimos levantamentos do Programa de Avaliação de Resíduos de Agrotóxicos e Alimentos da Anvisa, a cultura que tem sido campeã no uso de agrotóxico é o pimentão, que teve quase 90% de contaminação. Estimula-se que as pessoas comam mais frutas e verduras para evitar o câncer, mas frutas e verduras contaminadas também podem ser fatores de risco para o câncer. Então, esse modelo deixa uma encruzilhada para as populações.

Também tem as culturas históricas, como morango, mamão, tomate, que sempre têm níveis elevados de agrotóxico, que vão variando de ano para ano, com os cuidados que são tomados. Esses dados da Anvisa têm uma alta repercussão no país e inclusive o preço desses produtos acaba sendo reduzido por conta dos dados.

IHU On-Line – Como a legislação que rege os agrotóxicos tende a ser conduzida a partir de agora, com Katia Abreu no Ministério da Agricultura?
Fernando Carneiro – Nós estamos preocupadíssimos. Com o atual Congresso que tomo posse nesta semana, as perspectivas de uma desregulamentação na legislação são enormes. Ou seja, é possível que se quebre todo o marco regulatório para favorecer a entrada de agrotóxicos no Brasil. Existem mais de 17 propostas nesta direção e com a nova configuração do Congresso, nos próximos anos, essa questão será um grande desafio para a sociedade. O próprio presidente da Câmara já é um grande lobista que tem diversos interesses. Infelizmente os prognósticos não são bons: a tendência é de que se retire o papel da Anvisa e do Ibama para concentrá-los no Ministério da Agricultura, que já tem o comando do agronegócio. São propostas desse nível que poderão renascer.

Atualmente, para uma empresa conseguir um registro de liberação de um determinado agrotóxico, os três órgãos devem avaliar o produto: o Ministério da Saúde, o Ministério do Meio Ambiente e a Anvisa. Mas provavelmente vão querer criar uma agência ou uma comissão como a CTNBio – a qual já foi até batizada de CTNAgro -, para que a liberação dos agrotóxicos possa ser feita como é feita a liberação dos transgênicos atualmente, ou seja, concentrada num único órgão. Como você sabe, a CTNBio é um órgão que em toda a sua história, nunca negou a produção e comercialização de transgênicos.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Fernando Carneiro – A novidade é que vamos lançar neste ano o dossiê da Abrasco sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde na forma de livro, com um capítulo de atualização. Esse trabalho envolveu mais de 30 cientistas e movimentos sociais que atuam na temática. Esse será um marco de resistência aos agrotóxicos neste ano por parte da Ciência brasileira.

Esse será um ano em que a sociedade como um todo tem de estar mobilizada, atenta e pronta para pressionar o Estado para que ele cumpra seu papel de proteger o direito à saúde e ao meio ambiente.

José Carlos Moreira Filho: Comissão da Verdade não buscava investigar, mas sistematizar

“O fato de a Comissão da Verdade ter encontrado apenas dois dos desaparecidos políticos deixa isso claro: ela não é um ponto final, mas de partida”, pontua o Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça

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Por Andriolli Costa e Patrícia Fachin
Publicado em 30/01/2015
Instituto Humanitas Unisinos

Em dezembro de 2014, após um trabalho de dois anos e meio, a Comissão Nacional da Verdade entregou seu relatório final à Presidência da República, que compila informações, depoimentos e considerações referentes aos 21 anos de estado de exceção ao qual a sociedade brasileira foi submetida durante o governo ditatorial. Além do texto, os comissionados apresentaram ainda 29 recomendações, que incluem a responsabilização criminal dos responsáveis por práticas de violência e tortura utilizando o aparato do Estado, a desmilitarização da polícia e a revisão da Lei da Anistia de 1979 — reiterada pelo STF em 2010.

As recomendações geraram diversas críticas, especialmente dos grupos que apontam a necessidade de também responsabilizar as mortes dos grupos armados de esquerda. Segundo o Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, José Carlos Moreira da Silva Filho, é uma “grande perversidade exigir, no estado democrático que vivemos, que essas pessoas continuem sendo vistas como terroristas ou criminosos”. Ele esclarece que a imputação de crime político só pode ser feita contra um estado democrático. “Uma ação armada que atente contra um estado ilegítimo, usurpador, ditatorial, não é crime político, mas direito de resistência.”

Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line,MoreiraFilho ressalta que insistir em uma lei da Anistia, submetendo-se a um acordo feito durante a Ditadura, é render-se a uma “legalidade autoritária”. Uma tentativa de “dar um verniz de democracia a algo que não pode, de forma alguma, ser justificado”. No entanto, fora do virtuosismo do papel da Comissão, frente a um contexto negacionista e de impunidade como o brasileiro, cabem outras críticas ao relatório. Especialmente no que diz respeito aos apontamentos feitos quanto aos desaparecidos políticos.

“A Comissão da Verdade não se revelou uma comissão de investigação, mas de sistematização. Sistematizar o que já existia sobre a violência praticada, sobre os lugares onde se realizaram torturas, etc.” Diferente do que alguns comissionados indicavam, fica claro para Moreira Filho que a discussão sobre justiça de transição no Brasil ainda não chegou ao fim. “O fato de a Comissão da Verdade ter encontrado apenas dois dos desaparecidos políticos deixa isso claro: ela não é um ponto final, mas de partida.”

José Carlos Moreira da Silva Filho é mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Atualmente é professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça; é Membro-Fundador do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição – IDEJUST.

Confira a entrevista.


rvgkn5IHU On-Line – Quais foram as principais dificuldades nos trabalhos desenvolvidos pela Comissão nacional da Verdade?

José Carlos Moreira da Silva Filho – Em primeiro lugar é preciso reconhecer que a Comissão Nacional da Verdade demorou um tempo para conseguir engrenar em um trabalho mais efetivo, como a sociedade mereceria ter, especialmente no que diz respeito à publicização das audiências e oitivas feitas com as vítimas da Ditadura militar no Brasil. Foi só a partir de determinado ponto, infelizmente mais para o final do que para o começo do prazo, que a comissão começou de fato a divulgar essas audiências, publicá-las nos seus sites, a ter uma atuação mais aberta à sociedade.

Muito dos problemas que a comissão teve deveu-se especialmente a uma série de desacordos internos sobre os rumos que ela deveria tomar e as formas como ela deveria trabalhar. Isso ficou claro e patente quando se chegou ao ápice da saída de Cláudio Fonteles, em junho de 2013, da Comissão. Esse desacordo ficou claro quando houve a divulgação do relatório parcial, em que a Rosa Maria Cardoso defendeu que a lei da Anistia não poderia ser utilizada para evitar a responsabilização dos agentes públicos do Estado por crimes contra a humanidade. José Paulo Cavalcanti, também comissionado da CNV, posicionou-se contrariamente ao que foi demarcado no relatório parcial sobre este ponto.

Apesar disso, penso que com a entrada do Pedro Dallari a coisa assumiu um tom mais objetivo. Os trabalhos começaram a ser feitos com maior profusão. Isso tudo, entretanto, acaba sendo normal. Já são mais de 40 experiências de Comissões da Verdade no mundo todo e elas sempre são premidas por circunstâncias de tempo e, especialmente, políticas, pois mexem com assuntos que afetam aqueles que estão ligados aos poderes políticos e econômicos. Isso gera conflitos e, no caso brasileiro, de modo evidente, com as Forças Armadas.

IHU On-Line – O relatório tem recebido algumas críticas por ter aprofundado alguns temas, como, por exemplo, a participação do Brasil na Operação Condor. Quais aspectos o relatório deveria ter aprofundado mais?
José Carlos Moreira da Silva Filho – Antes de fazer estes apontamentos, é preciso apontar uma questão preliminar: a Comissão da Verdade não se revelou uma comissão de investigação, mas de sistematização. Sistematizar o que já existia sobre a violência praticada, sobre os lugares onde se realizaram torturas, etc. É claro que houve um acréscimo em algumas investigações pontuais aqui e ali, mas não se pode deixar de reconhecer que a grande importância do relatório da Comissão não está no aspecto investigativo. Está no fato de que é a primeira vez que o Estado brasileiro assume aquelas 377 pessoas listadas como responsáveis, aqueles lugares apontados e aquela estrutura de violência e perseguição. Uma coisa é ter esses dados apontados de forma clandestina, ainda durante a Ditadura, como o Brasil Nunca Mais. Outra é ver o próprio Estado, através de uma comissão criada por lei, dizendo isso. Esse, para mim, é o grande ganho desse relatório.

No entanto, deixando um pouco de lado esse aspecto virtuoso do relatório da CNV, nos deparamos com a ausência de informaçōes sobre o paradeiro dos desaparecidos políticos. Esse é o grande dedo da ferida e isso, inclusive, foi responsável pela mudança de tom no discurso da Comissão da Verdade. Ela começou assumindo, pela fala de alguns comissionados, que o trabalho seria uma espécie de ponto final no processo de transição brasileiro. Também se assumiu, de início, que a Comissão não entraria na questão da responsabilização criminal dos agentes da Ditadura, com alguns membros deixando escapar a opinião de que não deveria haver essa responsabilização.

Isso mudou muito, e são mudanças muito positivas. Primeiro, porque é impossível, à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos, não defender a responsabilização. Segundo, porque esse processo não é exatamente de transição, pois a transição política nós já fizemos nos anos 1980. O que estamos falando agora é de Justiça de transição. Sobre como uma sociedade lida com seu legado de violência, com seu legado autoritário.

Essa é uma questão importante não apenas em relação a uma certa justiça ao passado que deve ser feita, mas também em relação à qualidade da democracia que nós queremos. Um país com menos violência, com mais respeito aos direitos humanos e à democracia. Está evidente que no caso do Brasil esse é um processo longo e demorado, que vem se arrastando por décadas. Muito recentemente é que se começou a pautar, nos meios de comunicação, a possibilidade de se discutir uma interpretação racional e à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos para a lei da anistia. Há muita coisa ainda a ser feita dentro dessa ideia de justiça de transição no Brasil. O fato de a Comissão da Verdade ter encontrado apenas dois dos desaparecidos políticos deixa isso claro: ela não é um ponto final, mas de partida. E isso é pontuado também nas recomendações, quando ela aponta a necessidade de dar continuidade ao trabalho.

IHU On-Line – Muitas pessoas esperavam uma revisão da Lei de Anistia após a entrega do relatório da Comissão da Verdade. Esta é uma reivindicação viável?
José Carlos Moreira da Silva Filho – Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que não se trata de revisão da Lei de Anistia, mas sim da sua correta interpretação à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos e dos princípios e valores da ordem constitucional de 1988. Se tal interpretação é hoje viável? Sim. Mais do que em outros momentos, essa proposta se torna viável por várias razões. Primeiro porque pesa sobre o Brasil uma condenação da Corte Interamericana de Direitos Humanos que diz que a Lei de Anistia não pode ser considerada um obstáculo para a responsabilização por crimes contra a humanidade. Isso independentemente de ter sido acordado em 1979. Na minha opinião, no entanto, defendo que não houve acordo algum. A anistia branca foi uma lei imposta pelo regime que ainda estava em vigor na época, fazendo com que não houvesse outra opção que se apresentasse para que a redemocratização tivesse início.

Outro aspecto que revela a possibilidade de uma mudança no entendimento do Judiciário brasileiro sobre isso é o posicionamento da Procuradoria Geral da República e do Ministério Público Federal, que passam a ser amplamente favoráveis a isso. Há ainda o posicionamento de alguns dos ministros do Supremo que defendem essa tese, como é o caso do ministro Luís Roberto Barroso.

Juridicamente a decisão que o Supremo tomou em 2010 não terminou. Pende ainda um recurso sobre aquela decisão, além de outras ações propostas no STF com o mesmo objetivo. Há a possibilidade de isso acontecer, ainda que não seja algo fácil, e a Comissão da Verdade foi fundamental para possibilitar este questionamento. Isto porque desde a sua criação se formaram ao redor dela diversas outras comissões da verdade — estaduais ou da sociedade civil. A criação de comissões paralelas é um fenômeno peculiar ao Brasil, um caso único no mundo.

brasil_nunca_maisIHU On-Line – E as contribuições dessas Comissões paralelas foram levadas em conta pelo relatório final?
José Carlos Moreira da Silva Filho – Foram sim. O relatório final dialogou com a atividade dessas comissões da verdade paralelas. Isso ficou visível principalmente no âmbito das recomendações. Há uma rede chamada Rede Brasil – Memória, Verdade, Justiça, que reúne esses comitês todos em grande parte liderados por ex-perseguidos políticos ou militantes dos direitos humanos. No final do ano passado, a Comissão da Verdade provocou estes comitês a enviarem sugestões para estas recomendações. O Comitê Carlos de Ré, do Rio Grande do Sul, participou ativamente deste processo e enviou uma série de recomendações — nas quais eu também tive o prazer de poder ajudar. E qual foi nossa surpresa ao perceber que essas sugestões estavam presentes no relatório da Comissão da Verdade.

É claro que também houve um diálogo difícil entre os Comitês e a Comissão, especialmente no início, quando havia essa posição de não abrir as oitivas e testemunhos, além da dificuldade em relação aos desaparecidos. O que é, em verdade, uma dificuldade institucional, pois demanda uma vontade política que temos dúvidas se realmente existe em nível forte suficiente de confrontar essa posição — digamos “resoluta” — das forças armadas em não colaborar em quase nada.

IHU On-Line – Outra crítica que surge acusa o relatório de ignorar as mortes cometidas pela Esquerda, como apontam grupos como o Terrorismo Nunca Mais. Como você compreende estas críticas?
José Carlos Moreira da Silva Filho – Minha avaliação é que primeiro devemos olhar de onde vêm estas críticas. O grupo que você mencionou, o Ternuma, é liderado por figuras que encabeçam a lista que a Comissão Nacional da Verdade aponta que teriam cometido crimes contra a humanidade e sugerem a investigação e a instauração de um inquérito penal para responsabilizá-los pelos seus atos. Ela é fruto obviamente de grupos que, por um lado, não querem ser alvo de um processo de investigação e responsabilização e, por outro, não assumem claramente tudo o que fizeram. Pelo contrário, negam. É uma estratégia ambígua, pois, ao mesmo tempo que se diz: “O que foi feito teve como objetivo evitar uma ditadura comunista ou combater o terrorismo”, quando se pergunta sobre as práticas de tortura e de uso do espaço do Estado para esse tipo de ação violenta, dizem que é mentira e calúnia. É uma estratégia negacionista.

Para além disso, entendo que seria equivocado no caso brasileiro defender que a Comissão Nacional da Verdade tivesse também uma narrativa em relação às ações que osgrupos de resistência a ditadura praticaram — especificamente nos grupos de resistência armada. Isso porque existiram vários grupos que nem sequer chegaram a pegar em armas para poder resistir, e ainda assim foram torturados, mortos, desaparecidos, exilados e perseguidos.

No caso da resistência armada, foram grupos que se aparelharam como forma de resistência. Não eram grupos que tinham o interesse de tomar o poder antes do Golpe e impor, pelas armas, um regime de cores autoritárias. Não, o Brasil não tinha isso. Havia o Partido Comunista Brasileiro, que defendia o Jango, e os grupos que tinham no horizonte a possibilidade de promover uma revolução armada eram muito pequenos e não tinham nenhuma veleidade de querer fazer isso em um momento próximo. Não havia estrutura, organização e nenhuma possibilidade para isso. O único grupo armado com condições de tomar o poder eram os militares — apoiados pelos diferentes setores da elite da sociedade brasileira.

O que se perde de vista quando se defende a necessidade de investigar os crimes da Esquerda é que não há uma paridade entre os atos. Essas ações armadas foram ações de resistência. Ações que se estabeleceram depois que foi aplicado um golpe de estado no país e que foi desenvolvida uma política de supressão sistemática de direitos. Assim, muitos jovens e militantes entenderam que a única forma de combater uma ditadura é a resistência, nem que seja pelas armas. Independentemente dos objetivos políticos que cada um desses grupos teria caso a Ditadura tivesse sido derrubada por meio de uma ação de guerrilha, isso não é o mais importante.

Direito de resistência
Em um ambiente de radicalização como aquele instaurado pela Ditadura Militar, não se pode querer que aqueles que resistem também não sejam levados por uma visão de radicalização contraposta àquela, na medida em que existe um conflito de direito de defesa. E essas pessoas que tiveram coragem de fazer isso foram mortas, torturadas, perseguidas. O Brasil foi o país do Cone Sul que mais longe levou o processo de judicialização do que seriam, para a Ditadura, crimes políticos e de legalização de um processo que não poderia ser legalizado. O que estava na base disso eramAtos Institucionais imunes ao controle judicial, enfiados goela abaixo, violentando a Constituição democrática de 1946. Era uma legalidade autoritária, para usar a expressão do cientista político Anthony Pereira. Algo que buscava dar um verniz de democracia a algo que não pode, de forma alguma, ser justificado.

Essas pessoas já foram investigadas, já sofreram punições muito além do que deviam. Muitos estão desaparecidos, foram banidos, exilados, perderam o emprego ou caíram na clandestinidade. É uma grande perversidade exigir, no estado democrático que vivemos, que essas pessoas continuem sendo vistas como terroristas ou criminosos, quando na verdade o que faziam era exercer seu direito de resistência. Crime político, na sua conceituação, só pode ser feito contra um estado democrático. Uma ação armada que atente contra um estado ilegítimo, usurpador, ditatorial, não é crime político, mas direito de resistência. Num cenário negacionista, como ainda é o brasileiro, no qual passadas quase três décadas ainda se luta contra o óbvio, é complicado reivindicar uma revitimização dessas pessoas que tiveram coragem de resistir.

Grupos armados que se rebelam contra isso não têm igualdade, por exemplo, com o Exército, que conta com milhares de homens, mulheres, artefatos, tanto que foram massacrados. Se há um grupo organizado, que consegue se mobilizar com força ou poderio contra um grupo de Estado, ocorre uma guerra civil de verdade, mas isso não foi o caso do Brasil. Não foi mesmo. Hoje, mesmo na democracia, temos grupos armados que praticam crimes, e isso justifica que o Estado pratique contra eles tortura e desaparecimentoforçado? Em hipótese alguma. Não é possível que o governo assuma essa política. Não é possível que o Estado faça esse tipo de crime, tanto que até hoje sentimos a prática da violência estatal. Recentemente foi publicado o Anuário da Segurança Pública, e está aberto claramente para quem quiser ver as consequências da não realização de uma justiça de transição, não somente da Ditadura Militar, mas em relação a vários outros períodos de violência indiscriminada pelas instituições públicas brasileiras.

IHU On-Line – Uma das recomendações da Comissão na entrega do relatório final foi a desmilitarização da Polícia Militar. Você concorda?
José Carlos Moreira da Silva Filho – A polícia militar no Brasil, inicialmente, não tinha esse papel que passou a ter com a Ditadura. Ela ficava aquartelada e tinha uma ação pontual para intervir em algumas ações, ajudando o governo do Estado, e desde a Ditadura há um cenário frágil para essas mudanças. E a constituinte não teve força para mudar no cenário da segurança pública brasileira, que era uma instituição blindada na constituinte por oficiais que estavam presentes em todas as reuniões da comissão presidida por Jarbas Passarinho, mas, ainda sim, conseguiu avançar muito graças às mobilizaçõespopulares. Isso passa pela luta pela anistia, pelasDiretas Já e que culminaram com a constituinte, que resulta na Constituição excelente que temos, embora com alguns problemas, especialmente no que se refere às Forças Armadas. Nessa, em particular, manteve-se a estrutura da Ditadura.

Daí porque é tão importante a revogação pura e simples da Lei de Segurança Nacional feita ainda no período da Ditadura e de toda essa estrutura. Não se pode ter uma lógica militar para a realização do policiamento nas ruas. O policial está lidando com o cidadão, não com o inimigo externo. Essa é uma tendência que vem se avolumando a partir da Ditadura e do que não fez a democracia até agora. Esse é um dos pontos altos do relatório da Comissão Nacional da Verdade.

IHU On-Line – Depois da entrega do relatório, o coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro Dallari, disse que Argentina, Chile e Uruguai já julgaram quem praticou crimes de Estado em suas ditaduras, mas o mesmo não ocorreu no Brasil, e nesse sentido a presidente Dilma disse que “nós reconquistamos a democracia à nossa maneira, por meio de lutas duras, por meio de sacrifícios humanos irreparáveis, mas também por meio de pactos e acordos nacionais, que estão muitos deles traduzidos na Constituição de 1988”. Como o senhor vê essas declarações?
José Carlos Moreira da Silva Filho – Eu entendo a declaração da presidenta não como um obstáculo, porque a declaração da anistia é importante e ela foi, sim, um marco incontestável do início da redemocratização. Isso não quer dizer que precisamos interpretar a lei da mesma forma. Essa manifestação da presidenta pode ser interpretada de várias maneiras. Uma interpretação incontornável é que ela, de alguma maneira, representou uma finalização para acalmar o ânimo das Forças Armadas, ou seja, para avançar e não bater de frente. Eu não duvido que a presidenta Dilma seja favorável que se vá adiante nessas investigações. Ela atua em uma posição institucional onde lida com diferentes forças e tem que negociar e dialogar, o que compreendemos. Ao mesmo tempo ela não chega, necessariamente, a impedir ou contestar diretamente a possibilidade da responsabilização.

Há pesquisas recentes, uma delas feita por uma estudiosa em justiça de transição, a professora Leigh Payne, da Universidade de Oxford, que tem uma investigação muito interessante mostrando como a combinação de anistias com responsabilizações judiciais resulta em um avanço nas instituições e na produção de menos violência pelas instituições de segurança. Pegando o caso argentino, por exemplo, vemos que naquele momento histórico, mesmo tendo iniciado os juízos, volta-se atrás e coloca-se a Lei da Obediência Devida e Lei do Ponto Final, trazendo uma interrupção nesse processo de responsabilização (ou seja, uma lei de anistia). Isso contribuiu naquele momento histórico da Argentina para que não houvesse um retrocesso, para que o processo avançasse, como de fato ocorreu com a administração Kirchner.

Ela retomou com o apoio da suprema corte daquele país, que se afiliou, como deve ser, claramente ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, o que possibilitou a continuidade desses processos que continuam indo na Argentina e produzindo resultados muito positivos do ponto de vista institucional e coletivo. Isso fica claro na postura das Forças Armadas; a própria legislação de segurança da Argentina proíbe que as Forças Armadas, por exemplo, possam se envolver com segurança pública. Só em casos realmente excepcionais.

Anistia
Então, a anistia no Brasil, em 1979, foi importante, foi fundamental. Naquela época era visível que não havia outra opção e era preciso começar o processo de redemocratização, que aquela cláusula de anistia branca aos criminososdaDitadura era uma imposição que por pouco não passou no processo na Câmara, foi uma vitória por quatro ou cinco votos. Certamente não passaria no Senado, que era formado por um terço de senadores indicados pela Ditadura, ou seja, senadores biônicos, por meio de um outro golpe feito no Congresso por meio de um pacote de 1977, que mudou totalmente a configuração do Congresso. A Lei de Anistia, de 1979, permitiu o retorno dos exilados, a libertação dos presos políticos; ainda que muitos deles não tivessem sido anistiados, eles foram encobertos por outras estratégias jurídicas, mas não pela anistia. Muitos continuaram em liberdade condicional.

Então foi importante, sem dúvida, mas é falso dizer que a Constituição de 1988 encampou o que teria sido esse acordo. Penso eu que não foi um acordo. Foi uma espécie de “tá bom, vamos ter que aceitar isso porque não há outra opção”. A Ditadura continuava em ação. Não se tratou de uma conversa ou acordo, a maioria estava presa. Os políticos do MDB que procuraram costurar isso tiveram um papel muito importante, mas eram, claro, mais o alvo daquilo que poderíamos resumir como “o acordo da corda com o pescoço”.

Legislação
Isto é, era algo incontornável naquele momento histórico, mas não quer dizer que continue sendo. A Constituição não traz um artigo sequer sobre crimes conexos, ela não menciona. O que há é uma Emenda Constitucional, a 26/1985, que convoca a Constituinte. Essa emenda traz, também, uma reedição da Lei de Anistia de 1979, mas sem menção aos crimes conexos e sem trazer a definição esdrúxula da Lei de 1979 e deixa indefinido o que são crimes conexos. Na verdade há uma definição doutrinária que se afasta muito da definição de 1979, definição esta que a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB já pediu junto ao Supremo Tribunal Federal – STF que a interprete constitucionalmente.

No entanto, ao contrário do que alguns ministros argumentaram, a anistia não pode ser considerada um delimitador da Constituinte, que é soberana e tem liberdade de construir a ordem jurídica nova, onde a prática de direito constitucional se coloca. É muito paradoxal querer vincular a constituinte, que demarca o retorno da democracia no Brasil, a uma emenda que veio da ordem jurídica da Ditadura. Essa emenda veio no governo Sarney, mas não podemos esquecer que ele não foi eleito pelo voto popular. Inclusive ele era líder da Arena, foi uma chapa de composição naquele contexto de controle da transição política que a Ditadura procurou fazer. É terrível termos ministros do Supremo percebendo que a nossa Constituição de 1988 se atrele e se submeta à Constituição autoritária de 1969.

IHU On-Line – O que podemos esperar agora que o relatório foi entregue? O que vem depois?
José Carlos Moreira da Silva Filho – Essa pauta do pós-relatório da CNV foi, inclusive, o tema de um grande encontro nacional, e como membro da comissão de anistia e também como acadêmico e pesquisador do assunto, tivemos oportunidade de apresentar em Recife, demarcando os 50 anos do golpe. Quisemos iniciar o ano de 2014, 50 anos do golpe, para o pós-relatório da comissão da verdade. Até como uma maneira de se contrapor às forças políticas existentes no sentido de que o relatório deveria ser o ponto final. Penso que os horizontes ainda estão muito amplos e acredito que a CNV teve uma grande virtude, no sentido de viabilizar politicamente vários grupos e espaços da sociedade civil em torno desta pauta. Eu vejo um interesse civil muito claro, até mesmo como professor, em meus alunos jovens de 17, 18 e 20 anos, com um interesse muito grande e o envolvimento de muitos deles pelos políticos e os grupos que aí existem para levar adiante a questão. As pautas estão colocadas e se misturam com pautas atuais, como as que vieram das manifestações de Junho de 2013 que, parecem, foram as pautas mais firmes com relação às reformas das instituições. Esta semana uma imensa juventude, que pertence ao Levante Popular da Juventude, fechou a Rodovia Washington Luiz em um protesto muito bonito, diga-se de passagem, pedindo a punição e o julgamento dos torturadores da Ditadura. Acredito que o trabalho intergeracional de memória foi feito.

A própria comissão de anistia, na qual eu me filio, e a Comissão de Mortos e Desaparecidos, são comissões permanentes. Há uma perspectiva muito grande para que as duas comissões trabalhem juntas mais do que trabalharam em outros momentos, porque elas vão continuar levando adiante essa discussão no âmbito federal, construindo políticas de memória como tem sido feito. Ainda há a tarefa de identificar os outros desaparecidos políticos, de levar adiante esse processo de apuração e identificação que está proporcionando uma grande ventilação no Judiciário brasileiro, que ainda resiste muito. Em termos acadêmicos, então, nem se fala. Agora em março, por exemplo, teremos a 9ª reunião do Grupo de Internacionalização do Direito e Justiça de Transição – IDEJUST, fundado em 2009, com sede na Universidade de São Paulo – USP e com apoio da Comissão de Anistia, que reúne pesquisadores e acadêmicos das mais diferentes áreas do Brasil, da América Latina e de outros países do mundo. Há encontros anuais em que os trabalhos são trazidos e discutidos pelos presentes. O próximo encontro será nos dias 25 e 26 de março na USP e vai contar, inclusive, com a hospedagem do Instituto de Relações Internacionais, onde Pedro Dallari é professor. Ele vai participar junto com outros membros da CNV e membros de comissões estaduais, onde vamos discutir o balanço do relatório da CNV. Ou seja, o que tem de pano pra manga para trabalhar para o futuro é algo impressionante, sob o ponto de vista acadêmico, sob o ponto de vista institucional e social. Embora haja forças sociais que queiram impelir essa temática para um gueto, tenho certo otimismo de que o debate vai crescer e vai contaminar positivamente a cultura e as práticas do país.

IHU On-Line – Deseja acrescentar alguma coisa?
José Carlos Moreira da Silva Filho – Tem um ponto que eu gostaria de acrescentar, ainda sobre a parte mais crítica da Comissão Nacional da Verdade, até porque eu fiz parte desse grupo. Há um conjunto de alunos da USP, chamado GT JK, que reuniu professores, intelectuais e atores institucionais para se contrapor ao relatório da CNV no que se refere à sorte do nosso ex-presidente Juscelino Kubitschek, sobre se a morte dele teria sido um acidente ou um complô relacionado à Operação Condor. Uma polêmica semelhante ocorre aqui em torno da morte de João Goulart.

O que acontece no relatório da CNV é que eles buscaram os resultados da perícia feita pelos mecanismos da Ditadura na época e, a partir desse restabelecimento da perícia feita em 1976, construíram a conclusão de que ele teria sido morto por acidente. Tive a oportunidade de fazer um longo parecer sobre o assunto junto com outros juristas para demonstrar que não poderíamos afirmar com certeza que ele não foi assassinado pela Ditadura — aquela perícia está eivada de irregularidades e não pode ser levada a sério. Inclusive o próprio Judiciário carioca, em 1978, não o fez.

Há uma alegação de que um ônibus teria influenciado no acidente, mas o motorista foi inocentado, dizendo que não teve participação, e nenhum dos passageiros conseguiu afirmar, categoricamente, que o coletivo bateu no caminhão que colidiu com o Opala do JK. São pontos que indicam que este assunto deveria ter sido mais investigado, mas, como digo, não foi uma Comissão de investigação, então não se poderia fechar essa questão.

Acredito que o relatório da CNV fez mal quando afirmou e concluiu que o presidente teria morrido por acidente. O correto seria ter deixado em aberto, como aconteceu com os desaparecidos também. Esta é uma outra crítica que está sendo feita, esse material está sendo somado no Relatório JK, que está disponível na web, com mais de 2 mil páginas, e foi enviado à presidenta Dilma para análise.

Natalia Viana: Le journalisme à l’ère des « creative commons »

« Le journalisme d’investigation est très long à produire, il n’est pas lucratif, il ne se vend pas toujours. Pourtant, il est absolument nécessaire à la démocratie », affirme la directrice de l’Agence publique du journalisme d’investigation ». [2]

Interview réalisée par Andriolli Costa [1]

Traduction pour Autres Brésils : Pascale Vigier (Relecture : Roger Guilloux)

A l’époque d’internet, la logique qui depuis des siècles orientait la production journalistique a besoin d’être constamment repensée. L’articulation en réseau, la facilité de production et la libre circulation des informations ont ouvert dans le monde entier de nouvelles possibilités de communication, qui sont indépendantes des média. Ce sont des initiatives indépendantes, sans but lucratif ou même volontaires, financées et soutenues par des fondations, des institutions philanthropiques ou même par le propre public lecteur.

C’est un « journalisme crowdfunding » [3], qui produit un matériau libre de droits (creative common) [4] et atteint le web à travers un réseau de partenaires et de contradicteurs. Un journalisme qui ne perd pas de vue l’intérêt public et offre un travail dense de reportage et d’enquête lequel, souvent, ne trouve pas place dans les grands média.
Au Brésil, un des exemples de ce type d’initiative est le cas de la Pública-Agência de reportagem e jornalismo investigativo. Fondée en 2011 par trois amies journalistes, l’agence a déjà réussi plusieurs reportages primés et à grande répercussion. En 2013, au moyen d’une plateforme de crowdfunding, l’agence a pu amasser 59 000 reais en dotations permettant l’octroi de micro-bourses pour des reportages indépendants, avec 12 journalistes retenus. Le travail le plus récent a été le lancement du premier livre-reportage, intitulé Amazônia Pública [Amazonie publique] .

Dans l’interview donnée par téléphone à IHU On-Line, Natalia Viana, l’une des fondatrices de Pública, fait part de sa vision du marché et de ses professionnels, et des possibilités médiatiques générées par des expériences de journalisme indépendant. « Pública fait partie d’un réseau qui comprend douze autres sites similaires, chacun avec sa spécificité » annonce-t-elle. À une époque où les médias hégémoniques régnaient de manière absolue, que ce soit à la télévision ou dans les kiosques de journaux, il était légitime de penser à des média alternatifs. Cependant, dans un contexte de perte d’audience, de circulation et de crédibilité des grandes corporations, une telle opposition a perdu de son sens. « Dans la presse nous sommes en train de passer du scénario des média de masse à un scénario de masse de média », insiste-t-elle. « La tendance actuelle est à inverser la concentration. »

Pour Natalia il n’existe pas une crise du journalisme, mais une crise dans l’industrie.
« L’internet apporte une possibilité technologique qui en finit avec ce qui correspondait à l’industrie de l’information : le fait que [les media] tenaient les moyens de production et de diffusion en leurs mains », explique-t-elle. Les diverses initiatives de journalisme indépendant répandues dans le monde entier mettent clairement en évidence que l’activité journalistique reste importante, indépendante des grandes corporations. « Le journalisme est une production humaine, une production culturelle. Il ne cessera pas d’exister à cause d’une crise du modèle de production », conclut-elle.

Natalia Viana est diplômée de la PUC/SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) et possède un master en radio-journalisme du Goldsmiths College de l’Université de Londres. Elle a travaillé et collaboré avec divers media nationaux et internationaux, comme la revue Caros Amigos, Carta Capital et The Guardian (Royaume Uni). En tant que journaliste indépendante, elle a travaillé également comme collaboratrice de WikiLeaks. Viana est l’auteur de Plantados no Chão-Assassinatos Políticos no Brasil de Hoje (São Paulo : Conrad, 2007) [5] et de Jornal Movimento,uma reportagem (Edition Manifesto, São Paulo, 2011) [Journal Mouvement, un reportage]. C’est aussi elle qui signe l’introduction du livre de Julian Assange, Cypherpunks : Liberdade e o futuro da internet (São Paulo : Boitempo, 2013) [6]

Voyez l’interview qui suit.

IHU ON-LINE – Pública est née en 2011 en tant qu’initiative de vous-même et de deux autres journalistes, proposant un modèle d’entreprise sans but lucratif permettant de financer les grands reportages. Comment faire fonctionner l’entreprise selon ce modèle ?
NATALIA VIANA – Pública n’est pas une « entreprise », parce que les entreprises ont un but lucratif. Je n’aime pas beaucoup non plus le terme « modèle d’entreprise », parce qu’il implique que vous avez une « entreprise ». Nous produisons dans le système de creative commons, où tout est reproduit librement et gratuitement. Nous avons une série de plus de 50 éditeurs-relais qui utilisent notre contenu gratuitement, c’est-à-dire qu’il n’y a pas cette question de droits d’auteur. Nous ne commercialisons pas notre production.
Notre financement vient essentiellement d’apports financiers de fondations. Nous avons un partenariat très fort avec la Fondation Ford, avec l’Open Society Foundation et aussi avec deux autres fondations, la CLUA (Climate and Land Use Alliance) et la Omidyar Network, qui a commencé à donner un appui bien sympathique à notre projet de crowdfunding, un revenu assez important de financement. Nous avons fait un crowdfunding l’an passé, nous avons réussi à recueillir 59 000 reais redistribués en bourses pour que des journalistes indépendants fassent des reportages. Nous avons appelé toutes les personnes qui ont donné pour ce crowdfunding à un vote visant à choisir les projets devant être réalisés. Nous avons pu distribuer 12 bourses pour des reportages qui vont être publiés en 2014.

IHU ON-LINE – Pour quel objectif l’agence a-t-elle été créée?
NATALIA VIANA – Notre mission est de produire et stimuler le journalisme d’investigation indépendant au Brésil. Nous avons senti qu’il était nécessaire d’avoir un groupe indépendant de journalistes se consacrant à la pratique du journalisme d’investigation, qui est un domaine du journalisme en crise dans le monde entier – ici, oui, à cause du modèle d’entreprise, qui est celui des media de masse. Un modèle qui vise le profit. Le journalisme d’investigation prend beaucoup de temps, il n’est pas lucratif, il ne se vend pas toujours. Cependant, il est extrêmement nécessaire à la démocratie. Ce type d’initiative existe déjà dans différents pays du monde, aux États-Unis il existe depuis la fin des années 1970. Ce sont des organisations sans but lucratif dont l’objectif est de faire du journalisme dans l’esprit du bien public, du journalisme d’investigation, du journalisme sans esprit partisan.

IHU ON-LINE – Existe-il en Amérique Latine d’autres expériences similaires ?
NATALIA VIANA – Beaucoup. Pública fait partie d’un réseau qui a dix autres sites du même type, chacun avec sa spécificité. Le CIPER (Centro de Investigación e Información Periodística) au Chili, IDL-Reporteros au Pérou, La Silla Vacía en Colombie, Plaza Publica au Guatemala, Confidencial au Nicaragua, El Faro au Salvador, Animal Político, un site mexicain…. Je viens d’avoir connaissance d’un groupe intéressant en Équateur qui s’appelle Plan V, il en existe donc beaucoup. C’est une tendance qui est en train d’apparaître très fortement en Amérique Latine.

IHU ON-LINE – Vous envisagez ces expériences comme une presse alternative ? Si oui, alternative à quoi ?
NATALIA VIANA – Je n’utilise pas beaucoup ce terme. Justement parce que l’utilisation de ce terme laisse entendre qu’il existe une chose qui est « normale » et une autre qui est alternative. Ce que les spécialistes disent de plus en plus, et je suis d’accord, c’est que dans la presse nous sommes en train de passer d’un scénario de media de masses vers un scénario de masse de media. En d’autres termes, la tendance maintenant est d’inverser la concentration. Les grands groupes perdent non seulement leur crédibilité, mais aussi sont moins visités par rapport à de petites initiatives, alors beaucoup vont commencer à dégringoler. Dans ce contexte, je pense que le terme « alternatif » n’a pas beaucoup de sens. Il en avait à l’époque de la Dictature, par exemple, mais plus aujourd’hui.

IHU ON-LINE – Qu’estimez-vous être l’élément essentiel du journalisme ? Le reportage ? L’investigation ?
NATALIA VIANA – C’est l’information. L’information et le fait. Un autre élément qui pour moi est aussi très important dans le journalisme, c’est la narration. Savoir raconter une histoire. Le journalisme que nous pratiquons est ainsi : c’est le fait – non pas l’opinion, mais le fait, et savoir le raconter. Je ne suis pas d’accord avec les personnes qui disent que tout journalisme est investigation, que s’il n’est pas investigation, ce n’est pas du journalisme. Ou qui disent que l’investigation serait un journalisme pur, ou meilleur. Je ne le pense pas. Je pense que le journalisme d’information est aussi important, que le journalisme de divertissement est aussi important…. Ce sont des types différents de journalisme pratiqués par différents types de professionnels.

IHU ON-LINE – Existe-t-il une crise dans le journalisme ? Ou existe-t-il une crise du modèle d’entreprise du journalisme ?
NATALIA VIANA – C’est une crise de l’industrie. Pas seulement du modèle d’entreprise, mais de l’industrie du journalisme en soi. C’est une chose assez normale. Ce qui arrive c’est que l’internet apporte une possibilité technologique qui en finit avec ce qui configurait l’industrie de l’information : le fait qu’ils [les media] en mains les moyens de production et de diffusion. Maintenant ce n’est déjà plus ainsi, parce que tout le monde peut produire et peut diffuser. Il y a obligatoirement une chute importante dans la structure de production.
C’est cette crise qui se produit maintenant. Le journalisme continue à exister, surgissent ici et là beaucoup d’initiatives sympathiques, beaucoup même sans base de financement. Beaucoup de type volontariste, comme c’est le cas de Midia Ninja [7]. Le journalisme est une production humaine, une production culturelle. Il ne cessera pas d’exister pour une crise du modèle de production.

IHU ON-LINE – Si tous réussissent à produire, qu’en est-il de la préoccupation de la sélection, si l’on considère l’opinion et l’interprétation qui souvent enrobent le fait ?
NATALIA VIANA – Çà dépend de celui qui produit et du lecteur. Sur internet il y a réellement une multitude d’opinions, et ça n’est pas mauvais. Mais nous, dès le début de Pública, nous avons toujours eu en vue que notre rôle était de publier des faits, des données et des reportages fondés. Si bien que nous ne produisons aucun article d’opinion, nous ne produisons pas d’analyses, seulement du reportage, parce que c’était justement ce que nous trouvions qui manquait.

IHU ON-LINE – Dans quelle mesure pensez-vous que l’internet a un impact sur la production journalistique ? Serait-il possible de répéter une expérience comme Pública en matière de circulation et d’intérêt social dans un monde off-line ?
NATALIA VIANA – Je ne crois pas qu’il soit possible de faire ce type de relation, parce que les initiatives sont les fruits de leur époque. Au Brésil, durant les années 70, il y a eu des initiatives très importantes en ce sens, comme l’a été le journal Movimento (1975-1981). J’ai écrit un livre sur l’histoire de ce journal avec Marina (Amaral), l’autre directrice de Pública, et (Carlos) Azevedo, notre conseiller. L’une des choses que j’ai étudiées pour ce livre c’est justement comment ils réalisaient la distribution, qui était une histoire fantastique. C’était un journal pro-démocratie en pleine Dictature, qui était tiré dans une imprimerie ici à São Paulo ; les gens se relayaient du vendredi au samedi matin pour emballer, transporter à l’aéroport et transférer [les journaux] par avion. Il y avait des volontaires dans chaque ville, généralement des étudiants, qui recevaient le journal et allaient le vendre de bar en bar. Çà a été une initiative assez importante, qui a eu un impact politique significatif ; c’était à une autre époque, mais elle a eu un impact. Chaque initiative est le fruit de l’histoire, Pública est apparue maintenant parce que les outils que nous utilisons nous sont donnés.

IHU ON-LINE – Quelle est votre opinion sur la nécessité d’un diplôme de journalisme ?
NATALIA VIANA – Il est très important d’avoir une bonne formation, et le journaliste a besoin d’une formation solide. Personnellement je ne suis pas favorable à une obligation de diplôme, mais çà c’est mon opinion et non celle de Pública. Si le professionnel est formé, il est clair que ce sera un meilleur journaliste, mais la question est de savoir si nos universités sont à même de le faire ou non. Cette discussion est extrêmement polémique dans le monde entier, il n’y a pas de règle unique. Il existe de nombreux pays où le diplôme n’est pas obligatoire et où le journalisme fonctionne très bien. Au Brésil, adopter le diplôme a eu aussi une fonction importante dans la professionnalisation de l’activité journalistique, et historiquement cette conquête a été très importante, mais je pense que le débat est ouvert.

IHU ON-LINE – Qu’est-ce qui distingue un bon journaliste ?
NATALIA VIANA – J’en discute beaucoup avec Marina (Amaral) et nous sommes arrivées à une conclusion inattendue. Évidemment, en plus de s’en tenir aux faits, le journaliste doit être complètement engagé et passionné, souvent obsédé pour parvenir au plus près de la réalité du fait, infatigable, insistant et très embêtant. Mais, pour nous, l’absence de préjugé est un point fondamental. Le préjugé affecte beaucoup votre capacité à entendre l’autre, et tout bon journaliste a besoin de savoir écouter. Le bon journaliste n’a pas de préjugé.

Notes du traducteur:

[1] Andriolli Costa est un journaliste d’IHU-OnLine ayant pratiqué de nombreux reportages sur l’agronégoce.
[2] Agence pratiquant un journalisme sans but lucratif, dont les reportages, sous licence creative commons, peuvent être librement reproduits. Elle a pour principe, en suivant une investigation rigoureuse, de défendre les droits de l’Homme selon 3 axes : la Coupe du Monde 2014, les méga-investissements en Amazonie, la dictature militaire.
[3] Crowfunding : Mode de financement sans participation des acteurs traditionnels de financement, qui se fait notamment à travers les réseaux sociaux.
[4] Les « creative commons » sont une initiative proposant une solution alternative légale aux droits de la propriété intellectuelle. Les œuvres sous ce type de licence sont mises à disposition en ligne ou hors ligne avec des autorisations d’exploitation préalables de l’auteur afin d’encourager leur circulation.
[5] Plantés en terre – Assassinats politiques au Brésil d’aujourd’hui. Ce titre fait référence à l’assassinat du leader indien xukuru, Francisco de Assis Araújo, en mai 1998. Pour son épouse, il n’a pas été enterré mais « planté en terre ».
[6] Menace sur nos libertés : comment internet nous surveille, comment résister. Laffont : 2013.
[7] Midia Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação [Exposés indépendants, journalisme et action] : groupe formé en 2011 divulguant les nouvelles dans les réseaux sociaux tels que Facebook et ayant pour objectif l’activisme sociopolitique. Le groupe et son leader, Pablo Capilé, ont été accusés d’escroquerie en 2013.

Desculpe, amigo. O Pantanal não está aqui para servi-lo

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Partida para a focagem de animais (Foto: Andriolli Costa)

Por Andriolli Costa

Eu não tenho certeza quando percebi que ia me incomodar com aquele casal. Já não havia simpatizado com eles, é verdade, mas só no finzinho daquele primeiro dia no hotel fazenda no Pantanal tive noção do que nos esperava. Os gaúchos – como faziam questão de lembrar a todos – chegaram atrasados ao barco para nosso safari fotográfico, ignorando os pedidos do guia para colocar os salva-vidas. Sentaram na proa, de onde era difícil ignorá-los, e começaram o show.

“Olha, um biguá!” – apontamos para o pássaro que se exibia em contra-luz, empoleirado logo na saída de nosso hotel. A esposa, soando desanimada, pediu ao marido que tirasse foto da ave.

– E eu lá quero saber de biguá? Quero bicho grande! Jacaré, sucuri, capivara! – esbravejou.

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Biguá fazendo pose (Foto; Jessika Andras)

Aquele pássaro devia ser algum tipo de batedor. Um mensageiro enviado para sondar se aquele grupo entrava pelas águas do Rio Miranda, em Mato Grosso do Sul, era merecedor do que estava por vir. Não fomos. Depois dessa recepção, foram bem uns 10 minutos sem ver animal algum. Só os ouvíamos. O passeio duraria umas duas horas, mas aquele tempo era demais para a esposa.

– Cadê os “bicho”? – Questionou a esposa, em voz alta. Como ninguém respondeu, ela insistiu, cutucando uma turista sueca que não entendeu nada. Repetindo a pergunta, dessa vez voltou-se diretamente para o guia. Ela cobrava dele uma experiência como a da TV, com revoadas de pássaros por sobre a cabeça. Logo mais, um enorme tuiuiú, com quase três metros de envergadura de asa, passa sobre nós. O marido tenta: – Olha o tuiuiú, amor. Ao que ela responde com um simples “Pffff…”.

Aquele cinismo era tão constante que estragava também nossa estadia no Pantanal. Estávamos todos os demais “fantasiados de turistas”. Chapéus engraçados, câmera no pescoço, repelente espalhado até por cima das roupas. Mais do que isso, estávamos dispostos ao encantamento. Obviamente eu também desejava o hiperbólico. Queria ver sucuris tão grandes que poderiam ser figurantes de filme de Hollywood. Queria um rio tão infestado de jacarés que, ao passar a lanterna sobre suas cabeças, veria tantos pontinhos brilhantes sobre a água escura que teria a impressão de mirar uma cidade. Mas eu sabia que não estava indo ao circo. O Pantanal não estava lá para me entreter ou me servir. Cabia a mim me permitir o maravilhamento.

Em determinado ponto, o guia desligou os motores. Era lá que costumavam avistar as onças pintadas, nos contou. Deveríamos ficar em silêncio, ouvindo a mata, aguardando sinais do felino. Na minha frente, nem bem passados cinco minutos, os gaúchos se remexiam desconfortáveis. Fechei os olhos, em determinado ponto, buscando o envolvimento com aquele ambiente. Impossível. O casal não se continha.

– Que saco ficar aqui sem fazer nada, heim? Se pelo menos a gente pudesse dar uma pescadinha – reclamava o marido. “Nossa… Nem uma capivara! Nem uma cobra! Que absurdo”, questionava a esposa. Não foi surpresa nenhuma, é claro, quando nenhuma onça apareceu. Os gaúchos ficaram revoltados. Faltaram pedir o dinheiro de volta por a natureza não ter colaborado. Como se a onça tivesse obrigação de se mostrar quando se paga R$ 200 pela diária.

Pantanal não é espetáculo, é mistério

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O entardecer pantaneiro (Foto: Jessika Andras)

O primeiro dia não havia nem terminado, mas já não suportávamos mais nossos companheiros de viagem. E a cereja do bolo ainda estava por vir. Durante o jantar, de volta ao hotel, o gaúcho me chama da porta do restaurante. “Ô, gordinho! Ô, gordinho!”. Pediu que eu batesse no apartamento deles pela manhã, para que não perdessem o primeiro passeio do dia. Pego de surpresa, tento ser evasivo. Digo que vou tentar. Ainda incomodado, ele comenta:

– Como foi chato o passeio de hoje, né? Nem uma capivara… – repete a ladainha.

Eu poderia ter dito muita coisa nesse momento. Para meu arrependimento, entretanto, só disse que torcia para ele gostar mais do passeio nos outros dias. Satisfeito, o gaúcho partiu e me deixou com um tormento. Aquilo havia me perturbado. Eu podia ter dito algo, mas me omiti. Fugi da discussão por pura política da boa vizinhança. Não queria ser grosseiro, e devolver patada com patada, mas ainda assim dormi culpado aquela noite.

No dia seguinte acordamos de manhãzinha e fomos direto para o restaurante. Eles já estavam lá (droga…). Mais tarde, nos reunimos no pátio para aguardar o carro para o safári terrestre. O hotel, em si, já era encantador. Carcarás caminhavam pela sombra das árvores, indiferentes aos turistas. Num comedor de pássaros, ao lado do nome do local, um anu preto tentava se enfiar na fila de ração disputada pelos periquitos. Curtíamos o ambiente quando mais uma vez chega o gaúcho, espantando todos os passarinhos com o dedo em riste e se divertindo ao vê-los fugir. Minha namorada suspira e se afasta. Ele vem dar bom dia, e repete a missa da noite anterior.
– Como o passeio de ontem foi chato, né?

Dessa vez, não pude evitar. A resposta eu tinha pronta, havia pensado nela durante toda aquela noite.

“Sabe que eu não achei?”

– Ah é? – Surpreendeu-se.

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O jacaré do Pantanal alcança 2 metros de comprimento (Foto: Andriolli Costa)

“É que a experiência Pantanal não se resume só a ver ‘bicho’, sabe? É claro que é legal, é bacana, mas para quem só quer ver bicho é melhor ir ao zoológico. O Pantanal não é espetáculo, é mistério. Não é só ver, é ouvir, é se conectar. É escutar um mugido na mata e pensar: ‘O que é isso? É um boi?’ Não, é um socó-boi. Um pássaro! Não é fantástico? É boiar de bruços no Rio Paraguai, com a pessoa que se ama, e se sentir parte daquilo. Se você se deixar afetar por esse ambiente, se deixar tocar pelo mistério, vai sentir que é parte de tudo isso. E essa é a magia da experiência Pantanal”.

Mais tarde a Jessika me disse que enquanto eu gastava meu latim, o gaúcho me olhava com uma expressão que poderia ser traduzido como: “Mistério? Nossa, que bichona”. Aquiescendo levemente ele me olha, concorda, e se volta para o francês ao nosso lado.

– Foi chato o passeio de ontem né? Tinha que ter mais jacaré…

Ser incomunicável não é desconhecer o falar, é não saber ouvir

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Pesca esportiva de piranhas (Foto: Jessika Andras)

Além de nós e dos gaúchos, havia um casal de franceses, outro de suecos e no outro dia chegou um de dinamarqueses. Os gaúchos insistiam em puxar assunto com eles, sem qualquer preocupação com o idioma. Nem mesmo o espanhol, que o francês também arranhava. Contentavam-se em repetir devagar e mais alto, a cada vez, e riam sozinhos da incompreensão alheia. Faltou jacaré, né? Ja-ca-ré! – e dava risada.

Mas pior do que a incapacidade de se comunicar em outro idioma, é a de não conseguir entender aqueles que falam a mesma língua que a sua. Naquela janta, comemos frango. Os gaúchos, mais uma vez, se mostraram indignados. Durante o passeio do dia, ele incomodava o guia e os turistas:

– Eu não viajei 2 mil quilômetros, lá do Rio Grande do Sul, para comer galinha! Tanto peixe nesse rio… eu quero pacu!

O guia, pantaneiro de nascença, criado nas fazendas do Passo do Lontra, bem que tentou explicar. Era época de piracema, não se podia pescar e era difícil arranjar pescado nesse período. Absurdo, bradou o gaúcho. Deveria era haver mais fiscalização, mas não impedir a pesca completamente. Durante toda a volta para o hotel, o guia explicou sobre a extensão da área, sobre a dificuldade do trabalho da polícia ambiental e todo o contexto da região. Inútil.

Na chegada, havia bife para o almoço. O casal reclamou com o garçom, falou mais uma vez dos 2 mil quilômetros, e tudo mais. Chamou a gerente. Estávamos servindo o sorvete da sobremesa, e ouvimos mais uma vez a história dos pacus.

Do mesmo modo, a esposa passou o final de semana inteiro reclamando sobre os animais. Vimos búfalos, emas, jacarés e veados – que o marido se divertiu ao espantar, brincando que mataria aquele belo “terneiro”. Não foi suficiente. Ela brigava com o guia, dizendo que deveriam avisar no site que não tinha tanto bicho assim por ali. Mais tarde, o guia contava como os “gringos” curtiam passar o dia inteiro na mata. A mulher não entendia. “Meu Deus, mas o que eles veem de tão interessante aqui?”.

Realmente. Quando não se consegue ver ou ouvir por conta própria, não adianta explicar.

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Ela veio me ver (por dentro)

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Cavaleiro Guaicuru, no Parque das Nações

Por Andriolli Costa

Toda semana, duas ou três vezes pelo menos, ela vinha me ver. A casa no centro de São Leopoldo também era nova para mim, e aos poucos ela percebia os rastros do meu eu que iam surgindo nos cômodos. Quadros de Zagor na paredes, inspirados pela coleção de quadrinhos que “herdei” de meu pai; um chapéu de palha no quarto, da época que cobria jornalismo rural; uma receita infalível de sopa paraguaia na cabeça, que servi com menos de um mês de namoro. Eram as minhas pegadas, que percorriam toda a trajetória que hoje me trouxe até o Rio Grande do Sul – e me fizeram conhecer a Jessika.

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Morada dos Baís

Nestas férias de dezembro, no entanto, decidimos percorrer o caminho de volta. Por quase 20 dias, caminhamos intensivamente por terras sul-mato-grossenses. Ao seu lado, redescobri com outros olhos o que sempre me foi familiar: comer espetinho com mandioca e shoyo na Feira Central; experimentar tereré de vários sabores (até de Red Bull) lá no Mercadão; passar a tarde no Parque das Nações admirando as capivaras. Até do Hino do meu Estado eu me lembrei – e de como eramos obrigados a decorá-lo durante 4ª série. Eram coisas que eu sempre fazia, ou que há muito deixara de fazer por não ser mais novidade. Com ela, tudo parecia novo.

“Eram coisas que eu sempre fazia, ou que há muito deixara de fazer por não ser mais novidade. Com ela, tudo parecia novo.”.

Ela veio me ver. Veio me ver por dentro. O movimento foi revigorante e, para dizer o mínimo, revelador – tanto para mim, quanto para a Jessika. Mato Grosso do Sul, a cada dia, mostrava mais sobre mim do que eu queria admitir. Facetas minhas que fugiam do meu controle. Ao mesmo tempo em que eu podia ver tanta coisa com a qual me identificava (que vão desde expressões como, “estar na pica do saci” a gostar de comer a sambiquira do frango), também me deparava com aquilo que me fez ir embora. Com aquilo que me frustra, irrita e incomoda. E que me fez buscar em outros lugares a oportunidade de fazer diferente.

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Provando Tereré

Talvez esta seja uma sensação comum a todos que já moram sozinhos, mas nunca me sinto a vontade quando volto para a casa do meu pai ou da minha mãe. As regras são outras, a rotina é diferente e eu sempre me sinto ocupando um espaço que não me pertence mais. Por isso gosto de estar sozinho, para fazer minhas próprias regras. No entanto, o retorno a minha verdadeira casa – a interior, não a física – é inevitável.

Eu nunca gostei muito de pequi, nem guariroba, mas era inevitável sentir um pouco de nostalgia quando encontrava esses ingredientes pelo Sul. Também nunca escutei muito Almir Sater ou Paulo Simões. Ainda assim, quando eu estava sentado, morrendo de nervoso aguardando ser chamado para a entrevista do Doutorado, cantarolava mentalmente um trecho do Trem do Pantanal. “Ele agora sabe que o medo viaja também sobre todos os trilhos da Terra”. Uma lembrança inconsciente de que aonde quer que estejamos, nossas inseguranças vão conosco. E talvez o retorno a nossa casa interior, com tudo que há de bom e de ruim, seja a melhor fonte de energia para os desafios que virão.

Falando sobre casas, não existe lugar em que eu me sinta mais a vontade em todo o Mato Grosso do Sul do que a chácara da minha avó. É a familiaridade do frango frito e do doce de leite no tacho de cobre; do cheiro das vacas cagando no mangueiro; do ronco dos bugios a tardinha na beirada do córrego – que parece as portas abertas do inferno, diga-se de passagem. Sons, cheiros e imagens que fazem parte da minha vida desde a infância.

9Lá eu vi muito do que faço: o jeito do meu pai rosnar para os cachorros, protegendo sua comida; o modo como a Vó espanta os cachorros da varanda; o jeito de falar do Vô, que incorporo inconscientemente no dia-a-dia. Não importa o momento, ou onde eu more, lá sempre será meu lugar.

E justamente por isso, fiquei tão feliz ao ver a Jessika se sentir em casa lá. Ao vê-la dando comida para o gado, armando comigo formas de colher uma jaca, levantando a saia para enfiar o pé no brejo e se espreguiçando toda na rede. Aquele não era só meu lugar, era o nosso.

No dia que estávamos para ir embora, enquanto sincronizava minha respiração com a dela para embalar o sono, a Jessika faz o balanço de nossa viagem. Vendo minha alegria pelo momento, ela reflete:

“Sabe, eu não tenho nenhum lugar como este para te apresentar. Nada que me faria ficar tão contente em te mostrar; que seja meu porto-seguro”, lamentou.

Sei de um lugar que pode ser seu porto seguro, amor – disse a ela.

Do meu lado.

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José E. Franco – O imaginário antijesuíta em Portugal

José Eduardo Franco descreve o que chama de “mito negro” sobre a Companhia de Jesus que, através de campanhas de difamação e ódio, muito se assemelha à fobia social antijudaica

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Por: Ricardo Machado e Andriolli Costa
Publicado na edição 458 da Revista IHU On-Line

Quando Inácio de Loyola, o fundador da Companhia de Jesus, faleceu, em 1556, a Ordem dos Jesuítas contava com cerca de 1000 membros e 35 colégios em funcionamento. Em 1773, pouco mais de dois séculos depois, já eram 23 mil membros e cerca de 800 estabelecimentos de ensino — dentro e fora da Europa. O crescimento ostensivo da Companhia, que passou a ter grande influência tanto na igreja quanto nos governos locais, gerou aquilo que o historiador português José Eduardo Franco chamou de mito luminoso sobre os jesuítas — em que seus feitos eram enaltecidos e solarizados, e sua falta lamentada e relacionada à derrocada social.

No entanto, o incômodo causado pelo crescimento político da Ordem faz emergir com ainda mais força um imaginário negativo, alimentado por campanhas difamatórias, conspirações e intrigas. É o que Franco chama de mito negro dos jesuítas, “que tendia a atribuir os males, os insucessos e decadências sociais, econômicas, culturais, educativas e políticas ao papel dos jesuítas apresentados como conspiradores que cumpririam um plano secreto para estabelecer um domínio universal da Societas Iesu sobre a ruína de todos os poderes legítimos”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o historiador sugere: “Encontramos aqui muitos paralelos com a fobia social antijudaica e depois mais propriamente antissemita, enquanto ataque de teor racista ao povo hebreu, que percorreu toda a sociedade ocidental desde a Idade Média”. Para Franco, seria quase um sebastianismo ao contrário. “Ou seja, veem na Companhia não uma liderança salvadora, transformadora para melhor, mas um gênio mau, uma liderança que conduz tudo à decadência e ao obscurantismo.”

José Eduardo Franco é historiador, poeta e ensaísta especializado em História da Cultura. Possui doutorado em História e Civilização pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e em Cultura pela Universidade de Aveiro. Professor do Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa, ele coordena atualmente um vasto projeto de pesquisa, levantamento e edição dos Documentos sobre a História da Expansão Portuguesa, existentes no Arquivo Secreto do Vaticano. É também membro da comissão coordenadora do projeto da edição crítica da Obra Completa do Padre Manuel Antunes.

Franco é autor de diversas publicações, das quais destacamos: O Mito dos Jesuítas em Portugal, no Brasil, no Oriente e na Europa (Lisboa: Gradiva, 2007), Vieira e as mulheres: Uma visão barroca do universo feminino (Porto: Campo das Letras, 2007) e Jesuítas e a Inquisição: cumplicidades e confrontações (Lisboa: Aletheia, 2007).

O professor apresenta a conferência O mito negro dos jesuítas em Portugal e no Brasil: Origens, Evolução e metamorfose do antijesuitismo, no dia 11 de novembro, das 20h às 22h, no Auditório Bruno Hammes, na Unisinos. O evento faz parte da programação do XVI Simpósio Internacional IHU – Companhia de Jesus. Da supressão à restauração, e a programação completa pode ser encontrada em http://bit.ly/CiaJes2014.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que consiste pensar um “mito negro” dos jesuítas em Portugal e no Brasil?
José Eduardo Franco – Consiste na construção de uma imagem extremamente negativa da natureza e da ação da Companhia de Jesus pelos seus detratores e inimigos viperinos de várias proveniências religiosas, sociais e ideológicas. Este mito negro assenta numa verdadeira doutrina antijesuítica que tendia a atribuir os males, os insucessos e decadências sociais, econômicas, culturais, educativas e políticas ao papel dos jesuítas apresentados como conspiradores que cumpririam um plano secreto para estabelecer um domínio universal da Societas Iesu sobre a ruína de todos os poderes legítimos. Encontramos aqui muitos paralelos com a fobia social antijudaica e depois mais propriamente antissemita, enquanto ataque de teor racista ao povo hebreu, que percorreu toda a sociedade ocidental desde a Idade Média.

IHU On-Line – Em linhas gerais, como são caracterizados os mitos positivo e negativo dos jesuítas? No que se diferem do ponto de vista da racionalidade?
José Eduardo Franco – A leitura negativa do contributo histórico dos jesuítas faz destes uma espécie de promotores de um sebastianismo ao contrário! Ou seja, veem na Companhia não uma liderança salvadora, transformadora para melhor, mas um gênio mau, uma liderança que conduz tudo à decadência e ao obscurantismo. A propaganda antijesuítica é muitas vezes simplista e primária, marcada pela maneira obsessiva, muitas vezes pouco racional, de ver nos jesuítas os únicos causadores dos males sociais e políticos, à luz do esquema hermenêutico conspiracionista da causalidade única e diabólica explicada por Léon Poliakov .

Mas o mito negativo é contrabalançado, como muito bem refere, por um mito luminoso. Se os jesuítas tiveram ao longo da história muitos adversários, críticos e perseguidores também suscitaram muitos admiradores, simpatizantes, patrocinadores e protetores que engrossaram um verdadeiro movimento de apoio à Companhia de Jesus e que explica em boa parte o seu sucesso e sobrevivência perante os enormes obstáculos e graves vicissitudes históricas que enfrentaram.

Não poucos destes admiradores viram nos jesuítas a ordem mais excelente da Igreja Católica e difundiram a imagem positiva da sua grande eficácia, abnegação heroica, dedicação e de grandes resultados pela sua ação metódica e estrategicamente bem planejada.

IHU On-Line – Quem foram os principais precursores do mito dos jesuítas em nível internacional? Como se sentiram após a supressão da ordem? O que sofreram? Como viveram?
jefrancoJosé Eduardo Franco – Os fabricadores do mito negro dos jesuítas foram primeiramente membros da Igreja, nomeadamente de outras ordens, entre os quais pontificam dominicanos e franciscanos, mas também membros do clero secular, bispos como Melchior Cano , e membros de determinadas correntes católicas, como é o caso dos jansenistas célebres Blaise Pascal ou António Arnaut . Em paralelo temos a destacar figuras e correntes ligadas ao protestantismo que os jesuítas combateram.

A seguir evidenciaram-se personalidades ligadas a Universidades, como é o caso da Universidade de Paris, com destaque para o seu advogado Étienne Pasquier , que escreveu o célebre Catecismo dos Jesuítas. No mundo político e econômico, evidenciam-se, na história do antijesuitismo, ministros, secretários de estado, juízes, detentores de cargos militares e administração, colonos e comerciantes. Além disso, encontramos perseguidores antijesuíticos em outras religiões, como budistas, hinduístas e islâmicos. Há a destacar ainda uma miríada de dramaturgos e escritores de vários países que dedicaram peças e romances inteiros a denegrir a Companhia de Jesus.

No âmbito do universo imenso e diverso de detratores dos jesuítas, difícil de descrever nos limites desta entrevista, cumpre ainda referir alguns célebres egressos da Companhia. Trata-se de antigos membros que, por diversas razões, quiseram vingar-se de algum desagrado. Alguns deles escreveram libelos célebres contra os jesuítas, como é o caso mais famoso do autor polaco dos Monita Secreta (Instruções Secretas dos Jesuítas). Esta contrafação pretendia apresentar-se como a revelação de um alegado manual do método de conspiração da Ordem de Santo Inácio e que explicaria o seu sucesso.

Por outro lado, entre os construtores do mito luminoso encontram-se bispos, frades, nobres, comerciantes, aventureiros, reis e príncipes, além de pessoas simples do povo que confessaram por diversas vias a admiração e registraram o louvor dos méritos e competências superiores da Companhia de Jesus, defendendo e pedindo insistentemente o seu regresso nos períodos da sua expulsão e ausência.

Houve determinados momentos da história de cinco séculos de existência dos jesuítas em que figuras antijesuítas, que vieram a se tornar adversários da Companhia, assumiram posições políticas de comando supremo do Estado e usaram a sua posição de poder para combater e eliminar os Padres da Companhia, como o famoso caso de Pombal . Na segunda metade do Século das Luzes e no período do liberalismo e das primeiras ascensões dos regimes republicanos, que eram militantemente antijesuíticos, a Companhia de Jesus foi expulsa, extinta e correu mesmo o risco de desaparecer para sempre para gáudio dos seus detratores. No entanto, a Ordem de Santo Inácio revelou uma rara capacidade de renascer e regressar em força. Hoje, apesar das dezenas de expulsões totais ou parciais a que foram sujeitos ao longo da sua história em vários países, contando com uma extinção universal pelo Papa, os jesuítas estão pujantes e continuam a ser uma grande ordem na Igreja, o que revela a sua extraordinária capacidade de renovação e adaptação.

IHU On-Line – De que maneira a contrarreforma impulsionou os jesuítas a se tornarem (ou terem a impressão que haviam se tornado) quase maiores que a própria Igreja?
José Eduardo Franco – Os jesuítas afirmaram-se na modernidade em dois momentos cruciais. Primeiro, no quadro da querela protestante e da reação do movimento da contrarreforma que pretendia travar a expansão da reforma, nomeadamente a luterana e a calvinista , no qual muitos jesuítas se destacaram, e a Companhia de Jesus, através de investimento na multiplicação de instituições de ensino católico de qualidade, funcionou como a Ordem da Igreja que gizou uma estratégia global de combate ao protestantismo no plano educativo, da renovação espiritual e na potenciação do ideal missionário tanto internamente na velha cristandade europeia como nas missões ad gentes.

IHU On-Line – De que dimensão era a influência dos jesuítas na Igreja Católica? Como suas ideias suscitaram, inclusive, uma reforma na Igreja?
José Eduardo Franco – O crescimento exponencial da Ordem dos Jesuítas em poucas décadas, desde a sua fundação, em 1540, deveu-se à adesão de muitos membros provindos das mais diversas classes e setores sociais que permitiram oferecer amplos recursos humanos para a criação de uma rede mundial de missões, de colégios, de obras de assistências, assim como a aceitação de responsabilidades de destaque nas instituições da Igreja e da esfera política, em particular como conselheiros e assessores qualificados. Inácio de Loyola e o seu grupo fundador da nova ordem aprovada pelo Papa Paulo III estavam imbuídos do ideário de renovação das sociedades cristãs na linha da proposta de conversão interior com expressão nas práticas exteriores do movimento chamado da “devotio moderna”, que exigia uma reforma testemunhal dos membros e das instituições da Igreja pelo regresso às da fé e tendo por referência os exempla evangélicos. Em sintonia com célebres reformadores como Erasmo de Rotterdam , os jesuítas procuraram, pela educação, pela pregação, pela vivência coerente dos sacramentos e pela direção espiritual, realizar uma grande operação de mudança cultural e das mentalidades.

IHU On-Line – Como surgiu e como se caracterizava o anti-iniguismo (referente a Ignácio de Loyola) e de que maneira essa postura se tornou, mais tarde, o antijesuitismo?
José Eduardo Franco – Realmente, o movimento de oposição aos jesuítas foi antecedido pela crítica e alguma hostilidade à postura de Inácio de Loyola no seu percurso de conversão peregrinante entre Espanha, França e Itália. Da parte de membros do clero e especialmente da Inquisição, de quem se tornou arguido, Inácio foi alvo de suspeita antes de se tornar o fundador oficial reconhecido pela Igreja de uma nova ordem. A sua catequese, os seus apelos a uma vivência mais radical e coerente da experiência cristã suscitaram desconfianças e hostilidade. Foi identificado por alguns como pertencendo aos grupos radicais que defendiam uma Igreja mais mística, mais despojada e mais pura como é o caso do Alumbrismo espanhol que acabou por ser acusado de herético.

Estas desconfianças ultrapassaram-se com o reconhecimento canônico pelo papa do projeto inaciano de Ordem. Todavia, os jesuítas e a sua intrépida ação evangelizadora, apelando a uma conversão mais profunda, acabaram por continuar a suscitar muitos críticos e opositores quase em permanência até há bem pouco tempo.

fotojefranco-c1cfIHU On-Line – Por que o próprio surgimento da Companhia de Jesus é fortemente marcado por contradições, que ultrapassam a questão doutrinária da ordem, relativas a prerrogativas jurídicas e estatutárias da criação da Ordem?
José Eduardo Franco – A expansão, apelidada por alguns de meteórica, desta ordem nova na segunda metade do século XVI, usando para tal estratégias que hoje caracterizaríamos em linha com os critérios mais avançados de uma boa gestão empreendedora dos recursos em função dos objetivos a alcançar, provocou diferentes interpretações da parte de quem pretendeu oferecer uma explicação para este surpreendente sucesso. Uns, benevolamente, quiseram entender os progressos bem sucedidos da Ordem de Santo Inácio como sendo devido a uma assistência especial do Espírito Santo em consonância com o uso inteligente de estratégias racionalmente pensadas e inovadoras na captação de recursos e na sua aplicação eficiente. Outros, querendo ver um princípio demoníaco ou mal-intencionado a mover a Ordem inaciana, acusaram os jesuítas de usar artimanhas maquiavélicas e pouco apropriadas com os ditames do cristianismo. Em parte, podemos afirmar que, como por vezes acontece com quem é muito bem sucedido, a Companhia acabou por ser vítima do seu sucesso, atraindo invejas e adversários que não suportavam aquilo que entendiam ser a concorrência dos jesuítas, especialmente quando estes levavam a melhor.

IHU On-Line – De que forma o protagonismo social e político dos jesuítas foi, ao mesmo tempo, o combustível de ascensão e queda da Companhia de Jesus?
José Eduardo Franco – O envolvimento dos jesuítas em assuntos temporais, nomeadamente no plano político e econômico, acabou por contribuir para fomentar conflitos e dificuldades várias. Apesar das vantagens em termos e alargamento de influência e de captação de recursos da presença da Ordem em esfera de decisão política e de investimento econômico, a liderança jesuítica muito notada em várias esferas acabou por trazer prejuízos graves para a sua imagem. Sem dúvida, podemos ver aqui alguns fatores explicativos da sua ascensão e queda, embora não possam ser absolutizados.

IHU On-Line – Como foi para os jesuítas integrarem uma ordem católica em um dia e no dia seguinte estarem expulsos, em alguma medida, sem rumo? O que isso significou para ordem?
José Eduardo Franco – Foi sem dúvida muito dramática a experiência de expulsão, exílio e extinção para aqueles que consagraram a vida toda a esta Ordem e ao seu ideal. Não obstante, a própria Companhia no seu conjunto acabou por fazer uma reflexão, uma revisão de vida, um exame de consciência que acabou por trazer lições de conversão de posturas e estratégias que se tornaram úteis quando da sua restauração. A experiência de queda acabou por proporcionar uma experiência de deserto, de despojamento em ordem a uma purificação e melhoramento espiritual. Se superadas, as crises podem acrescentar experiência e, no caso da Companhia, converter práticas e modos de estar na Igreja e na Sociedade. Penso que isso acabou por ser positivo para os jesuítas, que hoje constituem uma Ordem que, com uma grande experiência e patrimônio históricos, é muito prestigiada dentro e fora da Igreja, e continuam a desempenhar papéis relevantes em vários planos. Ainda hoje em dia os jesuítas têm no imaginário social e cultural uma marca de qualidade, prestígio e eficácia.

Leandro Karnal: “Os jesuítas foram os primeiros do clero católico a entender a modernidade”

Leandro Karnal expõe as características da modernidade que são manifestas na Companhia de Jesus, dos avanços às contradições

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Por: Andriolli Costa
Publicado na edição 458 da IHU On-Line

Estendendo-se por todo o século XV e ao longo dos 300 anos seguintes, a modernidade apresentou uma série de novos desafios para a humanidade. As grandes navegações, que levavam pela primeira vez a um princípio de globalização e à descoberta do outro. No mesmo contexto, os Estados Nacionais conflitantes e a ascensão lenta do racionalismo vão paulatinamente encaminhando o mundo de um modelo teocêntrico para o antropocentrismo. “Tudo isto é a modernidade em meio à qual os jesuítas surgem. Os jesuítas foram os primeiros membros do clero católico a entenderem este desafio”, destaca o historiador Leandro Karnal.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Karnal ressalta algumas características da modernidade que são manifestas na Companhia de Jesus. Entre elas, uma das mais fundamentais: “separar a experiência do Cristianismo da sua base cultural. Para ser cristão eu não preciso ser italiano ou espanhol, posso ser tupi ou chinês”. No entanto, esta não era livre de dualismos e contradições. Ainda que defensora da liberdade e do indivíduo, ele ressalta: “a companhia era defensora do livre arbítrio e se montava numa estrutura absolutamente centralizadora”.

Leandro Karnal é graduado em História pela Unisinos, com doutorado em História Social pela USP. Trabalha há muitos anos com capacitações para professores da rede pública e publicação de material didático e de apoio para os professores. Atualmente é professor da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, membro de corpo editorial da Revista Brasileira de História e da Revista Poder & Cultura. Entre suas publicações, destacamos A Escrita da Memória – Interpretações e Análises Documentais (São Paulo: Instituto Cultural Banco Santos, 2004) e Cronistas da América (Campinas: Unicamp, 2004).

O professor participa da Mesa-Redonda A companhia de Jesus e a Modernidade, no dia 13 de novembro, das 14h às 16h30min, na Sala 1F101, na Unisinos. O evento faz parte da programação do XVI Simpósio Internacional IHU – Companhia de Jesus. Da supressão à restauração, e a programação completa pode ser encontrada em http://bit.ly/CiaJes2014.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que forma o surgimento da Companhia de Jesus, aprovada por bula papal em 1540, dialoga com os desafios da modernidade no ocidente enfrentados na época?
Leandro Karnal – Um mundo globalizado pela primeira vez, o desafio da diferença cultural acentuado, Estados Nacionais conflitantes e a ascensão lenta do racionalismo: tudo isto é a modernidade em meio à qual os jesuítas surgem. Os jesuítas foram os primeiros membros do clero católico a entender este desafio.

IHU On-Line – O que há de moderno na racionalidade jesuíta?
Leandro Karnal – Não fundir significado e significante, ou seja, separar a experiência do Cristianismo da sua base cultural. Para ser cristão eu não preciso ser italiano ou espanhol, posso ser tupi ou chinês. A querela dos ritos na China, ou seja, a defesa jesuítica de uma inculturação do Catolicismo é uma ponta deste processo.

IHU On-Line – Entre algumas das características da Ordem dos Jesuítas está o livre arbítrio, tanto entre si quanto do próprio papado. Por que estas são características tão importantes para compreender a Companhia de Jesus?
Leandro Karnal – Uma dialética. Defesa do livre arbítrio sim, especialmente nos combates jesuíticos aos que negavam isto como jansenistas , mas defesa de uma obediência como um “cadáver” e, a rigor, omissão do livre arbítrio. A companhia era defensora do livre arbítrio e se montava numa estrutura absolutamente centralizadora.

IHU On-Line – O livre arbítrio e a valorização do indivíduo estão ligados à racionalidade da modernidade? Que outras características dentro das práticas da Companhia também compõem este quadro?
Leandro Karnal – O missionário jesuíta é preparado para estar sozinho. Omite-se a oração do ofício em conjunto para reforçar a autonomia da ação jesuítica. Imagine-se um Anchieta refém numa praia sozinho ou um Xavier no meio do mar do Japão e podemos ter uma referência da formação de um quadro autônomo e individual. A Companhia é uma ordem, mas o jesuíta, um indivíduo. Isto é muito importante.

IHU On-Line – O século XVIII foi o século das luzes. Quais os nexos entre o iluminismo e a ligação dos jesuítas com as ciências e o ensino?
Leandro Karnal – Os jesuítas foram ambíguos. Por um lado estimulavam a leitura de autores críticos. O padre Clavijero ensinava autores racionalistas no México do século XVIII. Mas foram inimigos dos filósofos franceses, conseguiram pressão para a censura da Enciclopédia , combateram a influência iluminista. Havia um iluminismo jesuítico que era distinto do iluminismo da Enciclopédia.

IHU On-Line – Ao mesmo tempo em que eram sacerdotes, os jesuítas também se tornaram administradores (como no comércio de produtos agrícolas nas Reduciones), articuladores políticos, professores, gestores de universidades. De que forma eles se relacionavam com o dualismo existente entre exigências do mundo físico e espiritual que por vezes eram contraditórias?
Leandro Karnal – Para os jesuítas nunca houve dualismo. O livro Negócios Jesuíticos – o Cotidiano da Administração dos Bens Divinos, de Paulo de Assunção (São Paulo: EdUSP, 2004) analisa bem esta questão. Ter um negócio lucrativo com a erva-mate ou até o tráfico de escravos na Angola, como narrado por Alencastro no livro O Trato dos Viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul – Séculos XVI e XVII (São Paulo: Companhia das Letras, 2000), eram formas de obter recursos para a obra da Igreja e da Companhia. A pobreza entre jesuítas não era um conceito meta como entre franciscanos, mas um conceito de ação. Em outras palavras, o franciscano nunca poderia ter nada, o jesuíta poderia ter para uma missão.

IHU On-Line – Havia alguma diferença no contexto histórico que cercava a Companhia durante sua supressão (no século XVIII) e sua restauração (no século XIX)?
Leandro Karnal – São dois momentos quase opostos. A historiografia jesuítica precisou sempre mostrar a absoluta continuidade. Ela não é linear ao menos. O século XIX é um momento inteiramente diferente e a formação de padres, ainda que inspirada na mesma Ratio, é outra. Eu diria, mas precisaria muito tempo para explicar, que a Companhia do século XX é mais próxima do XVI e XVII do que a do XIX. Gente como Teilhard de Chardin , Karl Rahner ou Michel de Certeau recuperam um pouco mais da originalidade da Companhia no mundo Barroco.

IHU On-Line – Atualmente, qual é a racionalidade que orienta a Companhia em uma sociedade pós-moderna?
Leandro Karnal – A educação aberta, o debate, o empirismo e a adaptação aos mundos, como no jesuíta papa Francisco . Entender que a pós-modernidade (ou o mundo líquido) são momentos históricos passageiros e que a missão cristã é eterna.

IHU On-Line – Recentemente o papa Francisco propõe declarações que fogem da ortodoxia católica, como comentários mais brandos sobre a homossexualidade e o Big Bang. O que ainda deve ser feito para a Companhia avançar, como instituição, dialogando com os dilemas contemporâneos?
Leandro Karnal – As declarações não fogem da ortodoxia. O pensamento medieval é amar o pecador e odiar o pecado. O papa manda acolher o homossexual, mas não a homossexualidade. Comparando-se com coisas do passado, é um salto, mas não é uma mudança estrutural. Após Pio XII há uma intensa atividade da Pontifícia Academia de Ciências sobre teoria da evolução ou Big Bang. Na época de Paulo VI houve declarações similares.

IHU On-Line – Deseja acrescentar mais alguma coisa?
Leandro Karnal – A Companhia é uma peça fundamental na construção do mundo moderno. Não importa nossa relação de louvor ou de crítica, a ação continua lá. Este seria mais um momento de entender do que qualificar as ações jesuíticas, até porque qualificar fala muito de nós e pouco do outro.