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Filosofia e Sociologia

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José E. Franco – O imaginário antijesuíta em Portugal

José Eduardo Franco descreve o que chama de “mito negro” sobre a Companhia de Jesus que, através de campanhas de difamação e ódio, muito se assemelha à fobia social antijudaica

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Por: Ricardo Machado e Andriolli Costa
Publicado na edição 458 da Revista IHU On-Line

Quando Inácio de Loyola, o fundador da Companhia de Jesus, faleceu, em 1556, a Ordem dos Jesuítas contava com cerca de 1000 membros e 35 colégios em funcionamento. Em 1773, pouco mais de dois séculos depois, já eram 23 mil membros e cerca de 800 estabelecimentos de ensino — dentro e fora da Europa. O crescimento ostensivo da Companhia, que passou a ter grande influência tanto na igreja quanto nos governos locais, gerou aquilo que o historiador português José Eduardo Franco chamou de mito luminoso sobre os jesuítas — em que seus feitos eram enaltecidos e solarizados, e sua falta lamentada e relacionada à derrocada social.

No entanto, o incômodo causado pelo crescimento político da Ordem faz emergir com ainda mais força um imaginário negativo, alimentado por campanhas difamatórias, conspirações e intrigas. É o que Franco chama de mito negro dos jesuítas, “que tendia a atribuir os males, os insucessos e decadências sociais, econômicas, culturais, educativas e políticas ao papel dos jesuítas apresentados como conspiradores que cumpririam um plano secreto para estabelecer um domínio universal da Societas Iesu sobre a ruína de todos os poderes legítimos”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o historiador sugere: “Encontramos aqui muitos paralelos com a fobia social antijudaica e depois mais propriamente antissemita, enquanto ataque de teor racista ao povo hebreu, que percorreu toda a sociedade ocidental desde a Idade Média”. Para Franco, seria quase um sebastianismo ao contrário. “Ou seja, veem na Companhia não uma liderança salvadora, transformadora para melhor, mas um gênio mau, uma liderança que conduz tudo à decadência e ao obscurantismo.”

José Eduardo Franco é historiador, poeta e ensaísta especializado em História da Cultura. Possui doutorado em História e Civilização pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e em Cultura pela Universidade de Aveiro. Professor do Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa, ele coordena atualmente um vasto projeto de pesquisa, levantamento e edição dos Documentos sobre a História da Expansão Portuguesa, existentes no Arquivo Secreto do Vaticano. É também membro da comissão coordenadora do projeto da edição crítica da Obra Completa do Padre Manuel Antunes.

Franco é autor de diversas publicações, das quais destacamos: O Mito dos Jesuítas em Portugal, no Brasil, no Oriente e na Europa (Lisboa: Gradiva, 2007), Vieira e as mulheres: Uma visão barroca do universo feminino (Porto: Campo das Letras, 2007) e Jesuítas e a Inquisição: cumplicidades e confrontações (Lisboa: Aletheia, 2007).

O professor apresenta a conferência O mito negro dos jesuítas em Portugal e no Brasil: Origens, Evolução e metamorfose do antijesuitismo, no dia 11 de novembro, das 20h às 22h, no Auditório Bruno Hammes, na Unisinos. O evento faz parte da programação do XVI Simpósio Internacional IHU – Companhia de Jesus. Da supressão à restauração, e a programação completa pode ser encontrada em http://bit.ly/CiaJes2014.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que consiste pensar um “mito negro” dos jesuítas em Portugal e no Brasil?
José Eduardo Franco – Consiste na construção de uma imagem extremamente negativa da natureza e da ação da Companhia de Jesus pelos seus detratores e inimigos viperinos de várias proveniências religiosas, sociais e ideológicas. Este mito negro assenta numa verdadeira doutrina antijesuítica que tendia a atribuir os males, os insucessos e decadências sociais, econômicas, culturais, educativas e políticas ao papel dos jesuítas apresentados como conspiradores que cumpririam um plano secreto para estabelecer um domínio universal da Societas Iesu sobre a ruína de todos os poderes legítimos. Encontramos aqui muitos paralelos com a fobia social antijudaica e depois mais propriamente antissemita, enquanto ataque de teor racista ao povo hebreu, que percorreu toda a sociedade ocidental desde a Idade Média.

IHU On-Line – Em linhas gerais, como são caracterizados os mitos positivo e negativo dos jesuítas? No que se diferem do ponto de vista da racionalidade?
José Eduardo Franco – A leitura negativa do contributo histórico dos jesuítas faz destes uma espécie de promotores de um sebastianismo ao contrário! Ou seja, veem na Companhia não uma liderança salvadora, transformadora para melhor, mas um gênio mau, uma liderança que conduz tudo à decadência e ao obscurantismo. A propaganda antijesuítica é muitas vezes simplista e primária, marcada pela maneira obsessiva, muitas vezes pouco racional, de ver nos jesuítas os únicos causadores dos males sociais e políticos, à luz do esquema hermenêutico conspiracionista da causalidade única e diabólica explicada por Léon Poliakov .

Mas o mito negativo é contrabalançado, como muito bem refere, por um mito luminoso. Se os jesuítas tiveram ao longo da história muitos adversários, críticos e perseguidores também suscitaram muitos admiradores, simpatizantes, patrocinadores e protetores que engrossaram um verdadeiro movimento de apoio à Companhia de Jesus e que explica em boa parte o seu sucesso e sobrevivência perante os enormes obstáculos e graves vicissitudes históricas que enfrentaram.

Não poucos destes admiradores viram nos jesuítas a ordem mais excelente da Igreja Católica e difundiram a imagem positiva da sua grande eficácia, abnegação heroica, dedicação e de grandes resultados pela sua ação metódica e estrategicamente bem planejada.

IHU On-Line – Quem foram os principais precursores do mito dos jesuítas em nível internacional? Como se sentiram após a supressão da ordem? O que sofreram? Como viveram?
jefrancoJosé Eduardo Franco – Os fabricadores do mito negro dos jesuítas foram primeiramente membros da Igreja, nomeadamente de outras ordens, entre os quais pontificam dominicanos e franciscanos, mas também membros do clero secular, bispos como Melchior Cano , e membros de determinadas correntes católicas, como é o caso dos jansenistas célebres Blaise Pascal ou António Arnaut . Em paralelo temos a destacar figuras e correntes ligadas ao protestantismo que os jesuítas combateram.

A seguir evidenciaram-se personalidades ligadas a Universidades, como é o caso da Universidade de Paris, com destaque para o seu advogado Étienne Pasquier , que escreveu o célebre Catecismo dos Jesuítas. No mundo político e econômico, evidenciam-se, na história do antijesuitismo, ministros, secretários de estado, juízes, detentores de cargos militares e administração, colonos e comerciantes. Além disso, encontramos perseguidores antijesuíticos em outras religiões, como budistas, hinduístas e islâmicos. Há a destacar ainda uma miríada de dramaturgos e escritores de vários países que dedicaram peças e romances inteiros a denegrir a Companhia de Jesus.

No âmbito do universo imenso e diverso de detratores dos jesuítas, difícil de descrever nos limites desta entrevista, cumpre ainda referir alguns célebres egressos da Companhia. Trata-se de antigos membros que, por diversas razões, quiseram vingar-se de algum desagrado. Alguns deles escreveram libelos célebres contra os jesuítas, como é o caso mais famoso do autor polaco dos Monita Secreta (Instruções Secretas dos Jesuítas). Esta contrafação pretendia apresentar-se como a revelação de um alegado manual do método de conspiração da Ordem de Santo Inácio e que explicaria o seu sucesso.

Por outro lado, entre os construtores do mito luminoso encontram-se bispos, frades, nobres, comerciantes, aventureiros, reis e príncipes, além de pessoas simples do povo que confessaram por diversas vias a admiração e registraram o louvor dos méritos e competências superiores da Companhia de Jesus, defendendo e pedindo insistentemente o seu regresso nos períodos da sua expulsão e ausência.

Houve determinados momentos da história de cinco séculos de existência dos jesuítas em que figuras antijesuítas, que vieram a se tornar adversários da Companhia, assumiram posições políticas de comando supremo do Estado e usaram a sua posição de poder para combater e eliminar os Padres da Companhia, como o famoso caso de Pombal . Na segunda metade do Século das Luzes e no período do liberalismo e das primeiras ascensões dos regimes republicanos, que eram militantemente antijesuíticos, a Companhia de Jesus foi expulsa, extinta e correu mesmo o risco de desaparecer para sempre para gáudio dos seus detratores. No entanto, a Ordem de Santo Inácio revelou uma rara capacidade de renascer e regressar em força. Hoje, apesar das dezenas de expulsões totais ou parciais a que foram sujeitos ao longo da sua história em vários países, contando com uma extinção universal pelo Papa, os jesuítas estão pujantes e continuam a ser uma grande ordem na Igreja, o que revela a sua extraordinária capacidade de renovação e adaptação.

IHU On-Line – De que maneira a contrarreforma impulsionou os jesuítas a se tornarem (ou terem a impressão que haviam se tornado) quase maiores que a própria Igreja?
José Eduardo Franco – Os jesuítas afirmaram-se na modernidade em dois momentos cruciais. Primeiro, no quadro da querela protestante e da reação do movimento da contrarreforma que pretendia travar a expansão da reforma, nomeadamente a luterana e a calvinista , no qual muitos jesuítas se destacaram, e a Companhia de Jesus, através de investimento na multiplicação de instituições de ensino católico de qualidade, funcionou como a Ordem da Igreja que gizou uma estratégia global de combate ao protestantismo no plano educativo, da renovação espiritual e na potenciação do ideal missionário tanto internamente na velha cristandade europeia como nas missões ad gentes.

IHU On-Line – De que dimensão era a influência dos jesuítas na Igreja Católica? Como suas ideias suscitaram, inclusive, uma reforma na Igreja?
José Eduardo Franco – O crescimento exponencial da Ordem dos Jesuítas em poucas décadas, desde a sua fundação, em 1540, deveu-se à adesão de muitos membros provindos das mais diversas classes e setores sociais que permitiram oferecer amplos recursos humanos para a criação de uma rede mundial de missões, de colégios, de obras de assistências, assim como a aceitação de responsabilidades de destaque nas instituições da Igreja e da esfera política, em particular como conselheiros e assessores qualificados. Inácio de Loyola e o seu grupo fundador da nova ordem aprovada pelo Papa Paulo III estavam imbuídos do ideário de renovação das sociedades cristãs na linha da proposta de conversão interior com expressão nas práticas exteriores do movimento chamado da “devotio moderna”, que exigia uma reforma testemunhal dos membros e das instituições da Igreja pelo regresso às da fé e tendo por referência os exempla evangélicos. Em sintonia com célebres reformadores como Erasmo de Rotterdam , os jesuítas procuraram, pela educação, pela pregação, pela vivência coerente dos sacramentos e pela direção espiritual, realizar uma grande operação de mudança cultural e das mentalidades.

IHU On-Line – Como surgiu e como se caracterizava o anti-iniguismo (referente a Ignácio de Loyola) e de que maneira essa postura se tornou, mais tarde, o antijesuitismo?
José Eduardo Franco – Realmente, o movimento de oposição aos jesuítas foi antecedido pela crítica e alguma hostilidade à postura de Inácio de Loyola no seu percurso de conversão peregrinante entre Espanha, França e Itália. Da parte de membros do clero e especialmente da Inquisição, de quem se tornou arguido, Inácio foi alvo de suspeita antes de se tornar o fundador oficial reconhecido pela Igreja de uma nova ordem. A sua catequese, os seus apelos a uma vivência mais radical e coerente da experiência cristã suscitaram desconfianças e hostilidade. Foi identificado por alguns como pertencendo aos grupos radicais que defendiam uma Igreja mais mística, mais despojada e mais pura como é o caso do Alumbrismo espanhol que acabou por ser acusado de herético.

Estas desconfianças ultrapassaram-se com o reconhecimento canônico pelo papa do projeto inaciano de Ordem. Todavia, os jesuítas e a sua intrépida ação evangelizadora, apelando a uma conversão mais profunda, acabaram por continuar a suscitar muitos críticos e opositores quase em permanência até há bem pouco tempo.

fotojefranco-c1cfIHU On-Line – Por que o próprio surgimento da Companhia de Jesus é fortemente marcado por contradições, que ultrapassam a questão doutrinária da ordem, relativas a prerrogativas jurídicas e estatutárias da criação da Ordem?
José Eduardo Franco – A expansão, apelidada por alguns de meteórica, desta ordem nova na segunda metade do século XVI, usando para tal estratégias que hoje caracterizaríamos em linha com os critérios mais avançados de uma boa gestão empreendedora dos recursos em função dos objetivos a alcançar, provocou diferentes interpretações da parte de quem pretendeu oferecer uma explicação para este surpreendente sucesso. Uns, benevolamente, quiseram entender os progressos bem sucedidos da Ordem de Santo Inácio como sendo devido a uma assistência especial do Espírito Santo em consonância com o uso inteligente de estratégias racionalmente pensadas e inovadoras na captação de recursos e na sua aplicação eficiente. Outros, querendo ver um princípio demoníaco ou mal-intencionado a mover a Ordem inaciana, acusaram os jesuítas de usar artimanhas maquiavélicas e pouco apropriadas com os ditames do cristianismo. Em parte, podemos afirmar que, como por vezes acontece com quem é muito bem sucedido, a Companhia acabou por ser vítima do seu sucesso, atraindo invejas e adversários que não suportavam aquilo que entendiam ser a concorrência dos jesuítas, especialmente quando estes levavam a melhor.

IHU On-Line – De que forma o protagonismo social e político dos jesuítas foi, ao mesmo tempo, o combustível de ascensão e queda da Companhia de Jesus?
José Eduardo Franco – O envolvimento dos jesuítas em assuntos temporais, nomeadamente no plano político e econômico, acabou por contribuir para fomentar conflitos e dificuldades várias. Apesar das vantagens em termos e alargamento de influência e de captação de recursos da presença da Ordem em esfera de decisão política e de investimento econômico, a liderança jesuítica muito notada em várias esferas acabou por trazer prejuízos graves para a sua imagem. Sem dúvida, podemos ver aqui alguns fatores explicativos da sua ascensão e queda, embora não possam ser absolutizados.

IHU On-Line – Como foi para os jesuítas integrarem uma ordem católica em um dia e no dia seguinte estarem expulsos, em alguma medida, sem rumo? O que isso significou para ordem?
José Eduardo Franco – Foi sem dúvida muito dramática a experiência de expulsão, exílio e extinção para aqueles que consagraram a vida toda a esta Ordem e ao seu ideal. Não obstante, a própria Companhia no seu conjunto acabou por fazer uma reflexão, uma revisão de vida, um exame de consciência que acabou por trazer lições de conversão de posturas e estratégias que se tornaram úteis quando da sua restauração. A experiência de queda acabou por proporcionar uma experiência de deserto, de despojamento em ordem a uma purificação e melhoramento espiritual. Se superadas, as crises podem acrescentar experiência e, no caso da Companhia, converter práticas e modos de estar na Igreja e na Sociedade. Penso que isso acabou por ser positivo para os jesuítas, que hoje constituem uma Ordem que, com uma grande experiência e patrimônio históricos, é muito prestigiada dentro e fora da Igreja, e continuam a desempenhar papéis relevantes em vários planos. Ainda hoje em dia os jesuítas têm no imaginário social e cultural uma marca de qualidade, prestígio e eficácia.

Leandro Karnal: “Os jesuítas foram os primeiros do clero católico a entender a modernidade”

Leandro Karnal expõe as características da modernidade que são manifestas na Companhia de Jesus, dos avanços às contradições

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Por: Andriolli Costa
Publicado na edição 458 da IHU On-Line

Estendendo-se por todo o século XV e ao longo dos 300 anos seguintes, a modernidade apresentou uma série de novos desafios para a humanidade. As grandes navegações, que levavam pela primeira vez a um princípio de globalização e à descoberta do outro. No mesmo contexto, os Estados Nacionais conflitantes e a ascensão lenta do racionalismo vão paulatinamente encaminhando o mundo de um modelo teocêntrico para o antropocentrismo. “Tudo isto é a modernidade em meio à qual os jesuítas surgem. Os jesuítas foram os primeiros membros do clero católico a entenderem este desafio”, destaca o historiador Leandro Karnal.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Karnal ressalta algumas características da modernidade que são manifestas na Companhia de Jesus. Entre elas, uma das mais fundamentais: “separar a experiência do Cristianismo da sua base cultural. Para ser cristão eu não preciso ser italiano ou espanhol, posso ser tupi ou chinês”. No entanto, esta não era livre de dualismos e contradições. Ainda que defensora da liberdade e do indivíduo, ele ressalta: “a companhia era defensora do livre arbítrio e se montava numa estrutura absolutamente centralizadora”.

Leandro Karnal é graduado em História pela Unisinos, com doutorado em História Social pela USP. Trabalha há muitos anos com capacitações para professores da rede pública e publicação de material didático e de apoio para os professores. Atualmente é professor da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, membro de corpo editorial da Revista Brasileira de História e da Revista Poder & Cultura. Entre suas publicações, destacamos A Escrita da Memória – Interpretações e Análises Documentais (São Paulo: Instituto Cultural Banco Santos, 2004) e Cronistas da América (Campinas: Unicamp, 2004).

O professor participa da Mesa-Redonda A companhia de Jesus e a Modernidade, no dia 13 de novembro, das 14h às 16h30min, na Sala 1F101, na Unisinos. O evento faz parte da programação do XVI Simpósio Internacional IHU – Companhia de Jesus. Da supressão à restauração, e a programação completa pode ser encontrada em http://bit.ly/CiaJes2014.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que forma o surgimento da Companhia de Jesus, aprovada por bula papal em 1540, dialoga com os desafios da modernidade no ocidente enfrentados na época?
Leandro Karnal – Um mundo globalizado pela primeira vez, o desafio da diferença cultural acentuado, Estados Nacionais conflitantes e a ascensão lenta do racionalismo: tudo isto é a modernidade em meio à qual os jesuítas surgem. Os jesuítas foram os primeiros membros do clero católico a entender este desafio.

IHU On-Line – O que há de moderno na racionalidade jesuíta?
Leandro Karnal – Não fundir significado e significante, ou seja, separar a experiência do Cristianismo da sua base cultural. Para ser cristão eu não preciso ser italiano ou espanhol, posso ser tupi ou chinês. A querela dos ritos na China, ou seja, a defesa jesuítica de uma inculturação do Catolicismo é uma ponta deste processo.

IHU On-Line – Entre algumas das características da Ordem dos Jesuítas está o livre arbítrio, tanto entre si quanto do próprio papado. Por que estas são características tão importantes para compreender a Companhia de Jesus?
Leandro Karnal – Uma dialética. Defesa do livre arbítrio sim, especialmente nos combates jesuíticos aos que negavam isto como jansenistas , mas defesa de uma obediência como um “cadáver” e, a rigor, omissão do livre arbítrio. A companhia era defensora do livre arbítrio e se montava numa estrutura absolutamente centralizadora.

IHU On-Line – O livre arbítrio e a valorização do indivíduo estão ligados à racionalidade da modernidade? Que outras características dentro das práticas da Companhia também compõem este quadro?
Leandro Karnal – O missionário jesuíta é preparado para estar sozinho. Omite-se a oração do ofício em conjunto para reforçar a autonomia da ação jesuítica. Imagine-se um Anchieta refém numa praia sozinho ou um Xavier no meio do mar do Japão e podemos ter uma referência da formação de um quadro autônomo e individual. A Companhia é uma ordem, mas o jesuíta, um indivíduo. Isto é muito importante.

IHU On-Line – O século XVIII foi o século das luzes. Quais os nexos entre o iluminismo e a ligação dos jesuítas com as ciências e o ensino?
Leandro Karnal – Os jesuítas foram ambíguos. Por um lado estimulavam a leitura de autores críticos. O padre Clavijero ensinava autores racionalistas no México do século XVIII. Mas foram inimigos dos filósofos franceses, conseguiram pressão para a censura da Enciclopédia , combateram a influência iluminista. Havia um iluminismo jesuítico que era distinto do iluminismo da Enciclopédia.

IHU On-Line – Ao mesmo tempo em que eram sacerdotes, os jesuítas também se tornaram administradores (como no comércio de produtos agrícolas nas Reduciones), articuladores políticos, professores, gestores de universidades. De que forma eles se relacionavam com o dualismo existente entre exigências do mundo físico e espiritual que por vezes eram contraditórias?
Leandro Karnal – Para os jesuítas nunca houve dualismo. O livro Negócios Jesuíticos – o Cotidiano da Administração dos Bens Divinos, de Paulo de Assunção (São Paulo: EdUSP, 2004) analisa bem esta questão. Ter um negócio lucrativo com a erva-mate ou até o tráfico de escravos na Angola, como narrado por Alencastro no livro O Trato dos Viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul – Séculos XVI e XVII (São Paulo: Companhia das Letras, 2000), eram formas de obter recursos para a obra da Igreja e da Companhia. A pobreza entre jesuítas não era um conceito meta como entre franciscanos, mas um conceito de ação. Em outras palavras, o franciscano nunca poderia ter nada, o jesuíta poderia ter para uma missão.

IHU On-Line – Havia alguma diferença no contexto histórico que cercava a Companhia durante sua supressão (no século XVIII) e sua restauração (no século XIX)?
Leandro Karnal – São dois momentos quase opostos. A historiografia jesuítica precisou sempre mostrar a absoluta continuidade. Ela não é linear ao menos. O século XIX é um momento inteiramente diferente e a formação de padres, ainda que inspirada na mesma Ratio, é outra. Eu diria, mas precisaria muito tempo para explicar, que a Companhia do século XX é mais próxima do XVI e XVII do que a do XIX. Gente como Teilhard de Chardin , Karl Rahner ou Michel de Certeau recuperam um pouco mais da originalidade da Companhia no mundo Barroco.

IHU On-Line – Atualmente, qual é a racionalidade que orienta a Companhia em uma sociedade pós-moderna?
Leandro Karnal – A educação aberta, o debate, o empirismo e a adaptação aos mundos, como no jesuíta papa Francisco . Entender que a pós-modernidade (ou o mundo líquido) são momentos históricos passageiros e que a missão cristã é eterna.

IHU On-Line – Recentemente o papa Francisco propõe declarações que fogem da ortodoxia católica, como comentários mais brandos sobre a homossexualidade e o Big Bang. O que ainda deve ser feito para a Companhia avançar, como instituição, dialogando com os dilemas contemporâneos?
Leandro Karnal – As declarações não fogem da ortodoxia. O pensamento medieval é amar o pecador e odiar o pecado. O papa manda acolher o homossexual, mas não a homossexualidade. Comparando-se com coisas do passado, é um salto, mas não é uma mudança estrutural. Após Pio XII há uma intensa atividade da Pontifícia Academia de Ciências sobre teoria da evolução ou Big Bang. Na época de Paulo VI houve declarações similares.

IHU On-Line – Deseja acrescentar mais alguma coisa?
Leandro Karnal – A Companhia é uma peça fundamental na construção do mundo moderno. Não importa nossa relação de louvor ou de crítica, a ação continua lá. Este seria mais um momento de entender do que qualificar as ações jesuíticas, até porque qualificar fala muito de nós e pouco do outro.

Gaymon Bennett: O não lugar do teólogo no debate bioético

Gaymon Bennett reflete sobre a relação entre ciência, tecnologia e religião, e o espaço da teologia nas discussões que envolvem a sociedade tecnocientífica

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Por: Andriolli Costa e Ricardo Machado | Tradução: Isaque Gomes Correa
Publicada na edição 459 da Revista IHU On-Line

Imersa nos preceitos da tecnociência, a sociedade contemporânea tende a manifestar as dimensões da vida humana a partir do paradigma técnico. É assim com a economia, com a política, com as relações humanas e, até mesmo, com a religião. Em contrapartida, o teólogo Gaymon Bennett diverge deste ponto de vista, pois não compreende que a religião esteja subordinada à ciência. “As relações entre ciência, tecnologia e religião são estabelecidas nas práticas da vida diária”, destaca ele, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E propõe: “É a partir destas práticas que devemos pensar mais seriamente nestas relações, mesmo que isso signifique pensar um pouco menos (separadamente) sobre ‘ciência’ e ‘religião'”.

Pensar a articulação entre estes dois discursos que se propõem autoconsistentes é um entrave que se manifesta mesmo no diálogo aberto entre as áreas. Bennett, que atua como consultor na área de teologia, afirma que quando os teólogos são convocados para as comissões de bioética, nunca é para atuarem verdadeiramente como teólogos. Cumprem, desta forma, papel apenas de “representantes de comunidades religiosas” ou indivíduos motivados pela busca pelo “sentido da vida”. Em verdade, ele salienta, tanto a comunidade científica quanto a religiosa e seus praticantes compartilham essências universais e atemporais. Promover a relação, e não o afastamento, pode se provar um caminho mais proveitoso para ambos.

Gaymon Bennett possui graduação e doutorado em Ética Teológica pela Graduate Theological Union, em Berkeley, nos Estados Unidos, e doutorado em Antropologia Cultural pela University of California. Foi diretor de Comunicações do curso de Ciência e Religião do Center for Theology and the Natural Sciences (CTNS) em Berkeley (EUA). Atua também como assistente de pesquisa do quadro de aconselhamento ético da Geron Corporation, que trabalha com pesquisa em células-tronco, na Califórnia, Estados Unidos. Bennett é professor de Religião, Ciência e Tecnologia na Faculty of Religious Studies, no Arizona (EUA). Junto com Ted Peters, é autor de Construindo pontes entre a ciência e a religião (São Paulo: Unesp, 2003). Com Paul Rabinow, escreveu Designing Human Practices: An Experiment with Synthetic Biology (Chicago: University Press, 2012).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em nossas sociedades predominantemente tecnocientíficas e tecnoculturais, como se dá a relação entre ciência e religião?
Gaymon Bennett – Posso, evidentemente, apenas falar sobre a situação nos Estados Unidos, embora suspeite que muitas de minhas impressões concernentes às relações entre ciência e religião — e creio que poderíamos acrescentar tecnologia — são características também em outras partes do mundo. É absolutamente importante que façamos uma distinção de, pelo menos, dois aspectos presentes na pergunta. Primeiro, precisamos pensar sobre as múltiplas relações entre ciência, religião e tecnologia e dentro delas. Com certeza não há somente uma forma em que estes domínios da vida são reunidos. Segundo, precisamos pensar sobre a que estamos nos referindo quando usamos os termos ciência e religião, ou ciência, religião e tecnologia. O grande historiador americano da filosofia Richard McKeon costumava ensinar a seus alunos a seguinte equação: um termo = uma palavra + um conceito + um referente. Ao longo de diferentes épocas e lugares as palavras muitas vezes permanecem as mesmas. O que tais palavras significam e a que se referem é que muda consideravelmente. Penso que, hoje, uma das principais dificuldades em compreendermos como a ciência, a religião e a tecnologia se relacionam é que, muitas vezes, não especificamos o que queremos dizer por estes termos e ao que eles se referem no mundo.

Ciência, religião e tecnologia
Isso posto, acho que existem várias maneiras de se pensar sobre como a ciência, a religião e a tecnologia se relacionam atualmente. Um modo predominante é, em grande medida, o retórico. “Ciência” e “religião” estão sendo mobilizadas em discursos contestatórios como se fossem duas entidades separadas e autoconsistentes. Uma das razões pelas quais este modo retórico funciona tão bem é porque, evidentemente num certo nível, ciência e religião se separam e, na relação entre si, são um tanto autoconsistentes. Mas esta separação e autoconsistência relativa é mais uma questão de história institucional, pois todas as comunidades científicas ou praticantes de ciências, todas as comunidades religiosas ou seus praticantes, partilham de alguma essência universal ou atemporal! Grande parte do mundo moderno tardio se constituiu sob o signo de um imaginário político — podemos chamar de um imaginário secular — que tem, há muito, separado institucionalmente religião e ciência. Então, um modo predominante é esta separação retórica e institucional da religião e ciência como autoconsistentes e mais ou menos opostas.

Pode parecer deste primeiro ponto que, numa cultura predominantemente tecnocientífica, a religião encontra-se numa posição dominada em relação à ciência e tecnologia. Não me é óbvio que este seja o caso, ao menos nos Estados Unidos. Embora seja verdade que, nos níveis de política de Estado e de investimento econômico, a ciência e a tecnologia são dominantes em relação à religião. Este simplesmente é o caso que os futuros “salvíficos” nos quais estamos investindo são, em grande parte, tecnocientíficos. Eu trabalho em instituições, públicas e privadas, que recebem centenas de milhões de dólares em financiamento e investimento visando o apoio de um futuro tecnológico. Mas ainda é o caso nos EUA que as vidas de muitas e muitas pessoas se constituam ou por legados culturais ou mesmo por instituições ativas da religião. Hoje todos estamos familiarizados com o fato de que “a religião não foi embora”, como às vezes se diz. Portanto, mesmo onde se fala sobre a religião, a ciência e a tecnologia como autoconsistentes e coisas separadas, e até mesmo onde as instituições culturais, políticas e econômicas continuam dominadas pela ciência e tecnologia, não é o caso de que a religião tenha, consequentemente, definhado.

Mundo tecnocientífico
Uma última observação sobre este tema: uma terceira forma na qual as relações entre ciência, religião e tecnologia se estabelecem — e creio que, em muitos sentidos, esta seja a mais importante e mais interessante — é o simples fato de que as pessoas e instituições estão vivendo suas vidas em mundos saturados tanto pelos legados religiosos como pelos científicos. Se for o caso de que o mundo é predominantemente tecnocientífico, ou, se pudermos dizer de forma mais cuidadosa, que as formações tecnocientíficas chegaram para permear quase todas as dimensões de nossas vidas hoje, então é o caso, não obstante, de que as comunidades e os indivíduos religiosos, bem como as comunidades e pessoas impactadas pela religião, estão simplesmente diante da tarefa de viver a vida neste mundo permeado. Isso significa, dito de forma bem simples, que os jovens religiosos estão crescendo mediando suas vidas através das tecnologias digitais; que as pessoas, religiosas e não religiosas, estão consumindo comida artificialmente modificada. Significa também que os cientistas e as instituições científicas estão abrindo espaço num mundo marcado pela religião. Meus colegas cientistas em saúde pública global, por exemplo, estão perfeitamente cientes do fato de que quando se envolvem “na base”, em partes do mundo com as maiores disparidades na saúde, eles inevitavelmente precisam interagir e trabalhar, lado a lado, com instituições religiosas. Desse modo, penso ser crucial termos em mente que as relações entre ciência, tecnologia e religião sejam estabelecidas nas práticas da vida cotidiana. Creio que sejam nestas práticas diárias que precisamos pensar mais seriamente sobre tais relações, mesmo que isso acarrete pensar um pouco menos sobre “Ciência” e “Religião”.

IHU On-Line – Qual a contribuição da teologia para o debate bioético em torno das nanobiotecnologias?
Gaymon Bennett – Em anos recentes — e falo principalmente sobre a situação nos EUA —, as contribuições da teologia têm sido modestas no campo da biotecnologia avançada. Este fato não resulta de uma carência de mentes capacitadas ou de trabalho de qualidade! Diferentemente, trata-se de uma combinação daquilo que se pode chamar “posicionalidade” e micropolítica da verdade.

Aos teólogos lhes foi dado, basicamente, uma única e importante oportunidade de contribuírem seriamente para a bioética nos EUA, e esta oportunidade se deu através da participação deles em comissões federais de bioética, ou como membros das comissões ou especialistas (peritos) que dão seus testemunhos às comissões. Em ambos os casos, houve a tendência de colocar os teólogos ou como “representantes” das comunidades religiosas ou como indivíduos motivados por “questões de significado”. Nos dois casos, os teólogos, na medida em que são autorizados a participar no jogo da verdade sobre a natureza e o significado da biotecnologia, quase nunca lhes é permitido falar como tais — ao menos não de um jeito que possam ser levados a sério. No primeiro caso, como representantes das comunidades e das tradições, a eles se pediu para desempenharem um papel de especialistas sobre o que “estas pessoas” pensam. Nesse sentido, os teólogos serviram para representar as opiniões de um círculo eleitoral. No segundo caso, quando lhes pediram para falar como especialistas (peritos) sobre questões de significado, esperavam que eles “traduzissem” o discurso religioso num discurso filosófico “geral” vernacular que é, putativamente, mais neutro e, portanto, publicamente aceitável num discurso pluralista. Nesse sentido também, não me é óbvio que se está permitindo que os teólogos sejam a voz da teologia.

Hoje, este é um problema claramente sabido, e tem havido várias tentativas de confrontá-lo, tanto dentro do estudo do secularismo e da política quanto nas próprias comissões de bioética. Um exemplo deste último, que foi bastante marcante: o primeiro encontro da comissão de bioética do governo Obama foi sobre a questão da “biologia sintética” — isto é, a perspectiva de ser capaz de criar formas novas de vida através de projeto assistido por computador e construção automatizada. Durante o curso destas reuniões, um dos presentes sugeriu que as “preocupações religiosas” eram aquelas que lidam com a possibilidade de “violações intrínsecas da natureza”. Um dos membros da comissão perguntou a esta pessoa o que ela queria dizer com isso, tendo recebido a seguinte reposta: “Sou de uma tradição religiosa, moldada pelo movimento dos direitos civis nos EUA; a minha tradição preocupa-se profundamente com questões de justiça. Justiça não diz respeito apenas a violações intrínsecas da natureza”. O comentário foi simples e direto: era uma preocupação para com a definição cuidadosa dos termos. Mas no curso da reunião este comentário provou-se muito disruptivo positivamente. Disruptivo porque tornou acessível o diálogo sobre o que significa falar em nome da religião em ambientes políticos a respeito da supremacia da ciência. No decorrer da conversa, outro perito disse acreditar que “se deveria pedir às pessoas religiosas que querem falar sobre suas crenças para traduzirem suas tradições em termos que sejam parte de algo como uma razão universal”. Em resposta a este outro membro da comissão, Daniel Sumasy , médico e também padre franciscano, falou: “Para traduzir nesse sentido, eu teria que retirar de minha tradição toda a sua rica especificidade. Nesse caso, por que eu teria que falar afinal?” Este foi um momento importante para se mostrar a forma na qual as vozes religiosas são disciplinadas e policiadas em tais espaços bioéticos. Estes encontros não são novos, certamente, porém permanecem sendo oportunos.

Contribuições
Um último pensamento sobre este assunto: embora eu tenha dito pensar que os teólogos deram contribuições modestas ultimamente — e me incluo aqui! —, penso que existem muitos teólogos trabalhando em campos que poderíamos chamar de religião política ou política religiosa, os quais estão tendo um impacto substancial. Nestes estão incluídos os teólogos que trabalham como parte das organizações ativistas religiosas, que fazem parcerias com outras ONGs não religiosas para levantarem questões sobre as formas nas quais as novas biotecnologias estão não só aumentando as nossas capacidades técnicas, mas também intensificando as relações de poder explorador existentes, especialmente com relação ao capitalismo global e ao cuidado com o meio ambiente. No momento, penso que estas contribuições são limitadas em parte porque tais grupos tendem a pintar todas as tecnologias e organizações tecnológicas com as mesmas cores — não acho que as questões presentes nos biocombustíveis de segunda geração, por exemplo, sejam as mesmas que se apresentam no desenvolvimento de drogas ou na saúde pública global. Não obstante, estes ativistas, trabalhando em nome de suas tradições religiosas, são parte de um mecanismo vital de levantar questões e exigir respostas na medida em que estas potências biotécnicas se intensificam.

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IHU On-Line – Qual o espaço da razão e da religião na constituição do ser humano nas sociedades tecnocientíficas impactadas pela nanobiotecnologia?
Gaymon Bennett – Esta é uma pergunta muito importante, e acho que é uma daquelas que não têm uma resposta óbvia. Parece haver dois modos predominantes de razão e religião com respeito à tecnociência e à questão do humano hoje. O primeiro poderíamos chamar de “biopolítico”, ainda que eu faça algumas restrições quanto a este termo. O segundo poderíamos chamar de “dignitário”. O que quero dizer por biopolítico é que a maioria das vozes religiosas nos diálogos sobre como a tecnociência está contribuindo para moldar os nossos futuros humanos torna-se na questão de como — ou se — a vida pode ser melhorada em termos biomédicos ou ambientais. A resposta conhecida dos intelectuais religiosos a questões sobre as novas tecnologias tende a incluir algo no sentido da ideia segundo a qual as novas tecnologias são aceitáveis até o ponto em que elas contribuem para melhorias na saúde — humana e ambiental. É neste sentido que penso que a razão religiosa está sendo indexada ao biopolítico: a ideia de que o que realmente importa sobre as novas tecnologias e, talvez, até mesmo sobre as novas formas tecnocientíficas, de forma mais ampla, é até que ponto elas contribuem ou não para a melhoria médica e ambiental da vida, junto da questão de quem são aqueles que têm suas vidas melhoradas e quem, por assim dizer, “se deixa morrer”.

Eu penso, na verdade, que este modo biopolítico de raciocínio é bem importante na atualidade. O termo biopolítica, em muitos círculos acadêmicos, refere-se às potências nefastas do mundo moderno — exploração e dominação sob o signo do neoliberalismo. Uma série de textos filosóficos bastante importantes, escritos cerca de uma década atrás, marcaram a biopolítica como a lógica da era dos impérios modernos ou dos campos modernos de extermínio. Compreendido propriamente, no entanto, penso que biopolítica aponta para a questão de até que ponto estamos investindo na melhoria dos padrões de saúde das pessoas e populações. Nesse sentido, trata-se simplesmente da lógica que visa o aumento da vida e não pode, por si, fazer perguntas tais como: vidas de quem? Sob quais condições? Quem está decidindo? Quem está sendo excluído? Quem está sendo desempoderado? E assim por diante. Os críticos da biopolítica estão muito certos em discernir que, em situações de biopolítica, há muitas e muitas pessoas sendo excluídas e exploradas. O problema, todavia, e onde eu penso que precisamos permanecer vigilantes sobre não desistir de contrariarmos os regimes biopolíticos, é que estes regimes estão, na verdade, sendo deixados para as cúpulas em muitas partes do mundo e em muitas comunidades. Nos EUA, assim como noutros lugares, as disparidades na área da saúde entre ricos e pobres são enormes e flagrantes. Nesta situação de disparidade, acho que os intelectuais religiosos e outros críticos religiosos deveriam continuar exigindo que a vida dos mais vulneráveis fosse melhorada.

Dignidade humana

Um segundo modo de raciocínio que, penso eu, as comunidades religiosas estão fomentando em relação à questão da tecnociência e aos nossos futuros humanos é o que, em minha obra, chamo de “dignitário” — um estilo de razão política e antropológica que se ancora na noção da dignidade humana. Os modos dignitários de raciocínio são aqueles ancorados numa visão de humano como, de alguma forma, intrinsecamente inviolável. Eles operam numa lógica que chamo de “archonic” [literalmente, arcônico] — formado a partir dos termos gregos para “primordial” e “juiz”. Uma forma arcônica de raciocínio sobre o humano é uma forma de pensar que afirma que os humanos são, primordialmente, definidos por uma dignidade intrínseca e que esta dignidade intrínseca pode ser usada para julgar o estado atual das coisas no mundo. Então, é importante compreender que uma noção arcônica ou intrínseca da dignidade humana é, na verdade, relativamente nova. Antes do desenvolvimento das Nações Unidas e, depois, no Concílio Vaticano II na década de 1960, a noção de dignidade humana normalmente se referia ou a um aspecto particular ou característico dos seres humanos — de que eles eram racionais ou que foram criados por Deus, etc. — ou que a dignidade era algo alcançado através da posição na vida, tal como a unção dos reis, ou algo alcançado através do autodesenvolvimento (automelhoramento), tais como as noções renascentistas de cultivo das virtudes do tipo “divinas”. A política dignitária hoje, seja em ambiente religioso ou não religioso, tende, pelo contrário, a enxergar a dignidade humana como intrínseca e primordial — sempre já dada e que se autojustifica.

Modos Dignitários
Os modos dignitários de raciocínio tendem a estar articulados através do discurso dos direitos humanos, mas esta não é a única forma em que se manifestam. Tais modos também são articulados pelas comunidades religiosas em termos da forma como Deus quer que os humanos existam no mundo. Alguns dos documentos do Concílio Vaticano II são os mais articulados desta segunda forma de articular a política dignitária. Estes documentos caracterizam o mundo secular como incapaz de discernir as melhores formas da vida humana e da relacionalidade.

Como consequência, os humanos seculares são incapazes de viver de tal forma que seria apropriado para a sua dignidade intrínseca. O papel da Igreja é o papel do discernimento pastoral: nas situações onde a cultura tecnocientífica está criando ou variando novos padrões de ser no mundo, a exigência pastoral é discernir quais os modos de viver que são consistentes com a dignidade e propor formas nas quais o poder poderia ser exercido com conformidade. Este tipo de discernimento pastoral chegou a marcar muitas das publicações subsequentes do Vaticano sobre as novas tecnologias e, mesmo, as novas formas tecnológicas de viver no mundo. Penso, no entanto, que os usos mais articulados destas políticas dignitárias pós-Vaticano II foram, por sua vez, articulados por aquilo que podemos chamar de Teologia da Libertação. Há a impressão de que a Teologia da Libertação foi melhor em transformar as políticas dignitárias em práticas do que outros aspectos da Igreja Católica — que, de certa forma, faz paralelo entre a experiência das políticas dignitárias e os direitos humanos. A ONU, ao longo dos últimos 50 anos, esteve em menos condições de dar forma à prática dos direitos humanos do que muitas outras organizações não governamentais.

Em todo caso, penso que os modos biopolítico e dignitário de raciocínio se tornaram formas predominantes de relacionar a religião e a questão do humano e os meios sociais que estão sendo dominados pelas instituições, práticas e formas de pensar características da ciência e tecnologia. Acho que o lugar onde precisamos prestar atenção — e é aqui que o meu atual trabalho está focado — é em como as comunidades religiosas e outras estão retrabalhando e conectando os modos biopolítico e dignitário de raciocínio na luta para trazer à articulação uma racionalidade política e ética mais poderosa. Será fundamental assistir e ver — e, onde for apropriado, contribuir para — a formação destas racionalidades religiosas políticas híbridas.

IHU On-Line – Nesse contexto, como as novas formas de vida antropossintéticas restabelecem uma nova ecologia biológica na contemporaneidade?
Gaymon Bennett – A meu ver, esta é uma das perguntas mais interessantes. Num de seus últimos artigos, Michel Foucault propôs que uma atitude moderna ou um ethos moderno fosse uma atitude em que deveríamos perguntar: que diferença faz o hoje em relação a ontem? Para responder a esta pergunta, Foucault sugeriu que precisamos cultivar práticas éticas nas quais nos envolvamos simuladamente numa interrogação crítica do mundo, mas que também sempre reconheçamos que pertencemos ao mundo que nós criticamente interrogamos. Isso significa, na visão do Foucault, que não temos direito de “menosprezar o presente”.

Gaymon Bennett photoPenso que a máxima de Foucault de não menosprezarmos o presente continua sendo um dizer poderoso na atualidade. Ele nos coloca numa situação em que não podemos criticar o que está errado no mundo como se não participássemos nele e como se houvesse outro mundo, mais utópico, para o qual simplesmente poderíamos escapar. Uma atitude que interroga criticamente o presente mas que se recusa a menosprezá-lo é uma atitude bastante difícil — quanto mais compreendo os detalhes específicos de como e onde a ciência, a tecnologia e a religião estão interagindo no mundo, mais me percebo exposto às injustiças, mesquinharias e banalidades do mundo! Mas não é como seu eu ficasse à parte de todas estas coisas, independentemente de quanto eu tente não exacerbá-las.

A questão aqui, e a razão por que eu trago a máxima de Foucault em relação à sua pergunta, é que penso haver uma tendência ou para pensar da criação das novas ecologias biológicas no mundo como algo inevitável ou como algo intrinsecamente problemático. Acho que nenhuma das duas seja verdadeira. Na verdade, acho que estamos criando novas ecologias biológicas e não estou convencido de que isso seja necessariamente negativo em seu todo — embora, dadas as forças de dominação e exploração no mundo, seja provavelmente negativo na maior parte das vezes. Penso que precisamos lembrar de pensar o “bio”, presente no termo “biológico”, em seu rico sentido primeiramente sublinhado por Hannah Arendt . Assim como esta autora apontou, bio é um prefixo que se refere à vitalidade pura, frequentemente interpretada em relação à “biologia”.

Mas ele também é um prefixo que se refere a uma vida vivida humanamente — como em “biografia”. Uma importante questão, hoje, que precisamos pensar a respeito e com a qual temos que lidar é a seguinte: dado que a criação de novos organismos vivos é uma prática humana atualmente, prática que está conectada a novas formas de vida científicas integradas nas novas tecnologias das instituições científicas, como devemos envolver criticamente o “logos” da “bios”? Quais são as ecologias humanas e não humanas que estão sendo criadas não só porque liberamos organismos geneticamente modificados ou novos geneticamente para dentro das paisagens ambientais existentes, mas também quais as ecologias humanas e não humanas que estão sendo criadas pelo simples fato de que vivemos num mundo onde uma grande maquinaria política e econômica está sendo posta em funcionamento para a criação destes organismos e para o investimento de nossas esperanças — e medos — nos mundos que estes empreendimentos podem criar? São estas ecologias mais amplas — ecologias de novas instituições e práticas — tanto quanto os novos organismos vivos ou sintéticos que, penso, precisarão ser o espaço para reflexão profunda e sustentada sobre as relações entre ciência, religião e tecnologia hoje.

A Companhia de Jesus no Império Russo – Da Rússia Branca à Restauração

Marek Inglot - Foto Andriolli Costa

Por Andriolli Costa
Publicado na edição 459 da IHU On-Line

Às margens congelantes do rio Duína, sob o solo gelado e pálido da Bielorrúsia, a Companhia de Jesus encontrou o terreno adequado para florescer novamente. Após o breve papal de 1773, que suprimiu as atividades da Ordem de Santo Inácio, foi na região conhecida como Rússia Branca e sob o abrigo da czarina Catarina II que os pouco mais de 200 jesuítas restantes — de um total de 23 mil — puderam manter viva sua missão.

O trajeto histórico da Companhia pelo Império Russo foi relatado pelo historiador e jesuíta Marek Inglot, da Pontificia Università Gregoriana, especializado no período. Inglot ministrou a conferência A Companhia de Jesus no Império Russo (1772-1820) na quinta-feira, 13, encerrando o XVI Simpósio Internacional IHU: Companhia de Jesus. Da Supressão à Restauração, evento que se estendeu durante a semana na Unisinos.

O historiador frisa a importância que foi para a sobrevivência da Companhia o acolhimento por um soberano luterano (Frederico II, da Prússia) e de uma soberana ortodoxa (Catarina II, da Rússia). Detalhe que foi inclusive apontado pelo próprio Papa Francisco, durante seu discurso de 27-09-2014 para os jesuítas. A supressão da Companhia, decretada por Clemente XIV, necessitava que fosse aprovada pelos governantes locais, e que o bispado comunicasse a decisão papal à comunidade eclesiástica. A Prússia postergou a decisão de 1773 até 1782. Já a Rússia ignorou a decisão durante todos os 41 anos de sua vigência.

“Graças à intervenção da imperatriz russa, os 201 jesuítas em seu domínio não tiveram a mesma sorte dos outros 23 mil, suprimidos. Lá a decisão nunca foi canonicamente promulgada”, relata. “Catarina teve a tarefa histórica de assegurar a continuidade da ordem, que foi informalmente reconhecida por Pio VI em 1801 e restaurada universalmente em 1814 por Pio VII.”

Inglot relembra que ainda ignorando o breve, a decisão de manter a Companhia em atividade no império Russo gerou polêmica. Os jesuítas, diferentes das demais ordens, possuem um chamado 4º voto. Além dos votos de castidade, pobreza e obediência (ao seu Geral), assinam ainda o voto de obediência ao Papa. Como, desta forma, ignorar uma decisão formal? Mesmo com a permissão, o historiador afirma que muitos abandonaram a ordem — especialmente os jovens.

Do impasse entre o breve papal e a demanda da czarina, superiores da época, como Stanislaus Czerniewicz, optaram por não fazer nada que mudasse o “Status quo ante”. Assim, os jesuítas na Rússia “não abriram novos noviciados, nem retomaram os estudos em teologia e filosofia. Não concederam novos votos aos padres, nem elegeram novos reitores”. Durante três anos os números na Companhia só decaíram, restando 145 jesuítas. No entanto, o incentivo de Catarina II e o apoio dos jesuítas a Czerniewicz fez com que, sete anos após a supressão, os jesuítas abrissem um noviciado. “Os sacerdotes terminaram os estudos de teologia antes da supressão. Foram ordenados 20 jovens jesuítas. O passo definitivo foi o congregação geral em Pollocks, em que Stanislaus Czerniewicz foi eleito o primeiro Geral da Companhia depois da Supressão.”

O retorno da atividade jesuítica
Mas qual era o interesse da soberana em permitir — e incentivar — a atividade jesuítica? Vários eram os motivos. Em seu reinado como imperatriz, a czarina abriu a Rússia para o Ocidente e deu forte impulso à educação. Em 1772, um ano antes da Supressão, Áustria, Prússia e Rússia dividiram entre si o reino da Polônia, e a região da Rússia Branca ficou sob os cuidados de Catarina II. Com pouco mais de 1 milhão de habitantes, a região contava com 900 mil católicos. Manter os jesuítas atuando era uma forma política de servir aos anseios espirituais do povo, ao mesmo tempo que dar a eles o comando dos Colégios era garantir a formação de uma elite intelectual russa.

A influência jesuíta na educação teve crescimentos impressionantes. “Em 1801 o colégio de Polostk tinha 30 alunos em três meses de atuação. No outro ano eram mais de 100 e, no seguinte, 200”. O ciclo de ensino durava seis anos, onde se dava especial foco — a mando da czarina — não apenas em filosofia e teologia, mas nas línguas modernas e nas ciências aplicadas. O ensino era feito em russo. “No ano da morte de Catarina, 726 alunos estudavam em Polostk gratuitamente, e em 1814 eram cerca de 2 mil”, relata o historiador.

Outra conquista importante foi a restauração da atividade missioneira. “De 1803 em diante, seis novos importantes centros de missão foram fundados.” Os destaques eram para as missões na região do Rio Volga; em Odessa, na região do mar Negro, e em Astrakhan, na região do Mar Cáspio. “Em 1811 foram inauguradas missões na Sibéria, a 1 mil km de distância uma da outra.”

Caminhos para a restauração
Com a retomada das atividades da Companhia, era questão de tempo até que o papado a reconhecesse canonicamente. Para Inglot, um dos grandes colaboradores para a restauração foi o padre Gabriel Grubert. Conselheiro fiel do Czar Paulo I, com quem tinha audiências diariamente, incentivou-o a escrever uma carta ao papa solicitando o reconhecimento da Companhia. “O soberano sabia que isso traria os ex-jesuítas para a Rússia, e ele desejava aumentar seu corpo para confiar toda a educação do país aos jesuítas”. Como Pio VII era favorável, reconhece a ação da companhia na Rússia. Demorariam ainda 13 anos para que finalmente a restauração total fosse proclamada.

“A aprovação foi o primeiro passo. Em 1804, o papa também restitui a ordem no reino das duas Sicílias. A supressão não foi revogada antes devido às tormentas revolucionárias, mas com a volta do Papa da prisão e do exílio imposto por Napoleão, não tarda para que em 1814 a restauração permita o retorno da Companhia de Jesus a partir do império Russo.”

Quem é Marek Inglot?
Marek Inglot, jesuíta desde 1980, é doutor na História da Igreja pela Pontificia Università Gregoriana, onde é professor na Faculdade de História e Bens Culturais da Igreja; também foi Decano no período de 2003 a 2009. Foi membro do Instituto Histórico da Companhia de Jesus e membro da Academia Russa de Ciências de Moscou. É colaborador da Academia Russa de Ciências de Moscou. Marek é ainda autor do livro La Compagnia di Gesù nell’Impero russo (1772-1820) e la sua parte nella restaurazione generale della Compagnia (Roma: Editrice Pontificia Università Gregoriana, 1997), já traduzido em russo e em ucraniano.

Lewis Gordon: Para romper com a teodiceia filosófica

O filósofo e cientista político Lewis Gordon propõe repensar a relação com os clássicos canônicos e centristas, não em um movimento de recusa, mas de compreendê-los a partir das incoerências de seu tempo

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Por: Andriolli Costa / Tradução: Gabriel Ferreira
Publicado na Revista IHU 459

Nos estudos teológicos, um dos grandes dilemas diz respeito à teodiceia: como pode um Deus, que é bom, permitir a maldade no mundo? Diante destes questionamentos, surgem ressalvas que imputam à humanidade toda a culpa das injustiças, e a divindade — inalcançável — permanece além de nossa compreensão. “Deus escreve certo por linhas tortas”, alegam alguns. “Deus nos dotou de livre arbítrio, e foi nossa escolha praticar o mal”, justificam outros. Em ambos os casos, provoca o filósofo Lewis Gordon, “o Deus é deixado intacto”.

Jamaicano por nascimento, Gordon desenvolve um pensamento descolonial da própria filosofia e alerta que por vezes nós incorremos numa teodiceia do texto. “O texto, e por extensão seu autor, é como um Deus. Assim, racismo, sexismo, homofobia, classismo e toda a degradação de humanidade que nós lemos nos textos torna-se simplesmente uma falha em como nós lemos os textos”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Gordon aponta estas falácias, propondo que os autores sejam vistos não à parte de suas incoerências e preconceitos, mas a partir destas. Este, no entanto, não é um chamado para não lê-los. Ao contrário. “Denunciar as teodiceias de textos significa rejeitar essa abordagem. É um chamado a realmente ler os textos.” O filósofo reflete ainda sobre a decadência do modelo eurocêntrico de pensamento, a importância de descolonizar o pensamento e sobre os embates entre Frantz Fanon e Hannah Arendt.

Lewis Gordon é graduado em Ciência Política e Filosofia pelo Lehman College, da City University of New York. Seu doutorado foi na Universidade de Yale, em Filosofia. Escreveu em diversos veículos e periódicos, e foi o primeiro presidente da Caribbean Philosophical Association. Gordon participa de diversos grupos de pesquisa, é professor de Filosofia, Estudos Africanos, Estudos Judaicos e Vida Judaica Contemporânea da Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos. Catedrático visitante em Eurofilosofia no departamento de Filosofia da Universidade de Toulouse, França. O pesquisador é autor, entre outros livros, de What Fanon Said: A Philosophical Introduction to His Life and Thought (Fordham University Press, 2014), La teoría política en la encrucijada descolonial (Buenos Aires: Del Signo, 2009) e An Introduction to Africana Philosophy (Cambridge University Press, 2008).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Você afirma que, frequentemente, ao refletir sobre o pensamento de filósofos europeus, incorremos na “teodiceia do texto”. O que isso indica sobre o modo como nos colocamos como leitores frente aos pensadores coloniais?
Lewis Gordon – Teodiceia envolve a racionalização do bem e a existência de um Deus onisciente em face do mal, da injustiça e de outras infelicidades. A racionalização clássica é culpar a humanidade por esses problemas da seguinte maneira: o Deus está para além da nossa compreensão; assim, é a nossa estupidez que levanta essas questões. Ou ainda: o Deus nos dotou de livre-arbítrio e nós estragamos tudo. Em ambas, o Deus é deixado intacto.

Ora, quando eu digo “teodiceia do texto”, eu quero dizer a imposição desta racionalização em como nós lemos. O texto, e por extensão seu autor, é como um Deus. Assim, racismo, sexismo, homofobia, classismo e toda a degradação de humanidade que nós lemos nos textos torna-se simplesmente uma falha em como nós lemos os textos. Isso é uma falácia. É a deificação do texto que requer uma teodiceia para torná-lo proverbialmente kosher .

Contudo, é um erro concluir que apontar para o fato de que esses são elementos que existem nos textos escritos por seres humanos seja um chamado a não lê-los. Eu defendo que isso é falso. Denunciar as teodiceias de textos significa rejeitar essa abordagem. É um chamado a realmente ler os textos. Isso significa trazer ao primeiro plano a humanidade das pessoas que os escreveram. Significa admitir que eles não são textos perfeitos, mas textos com aquelas imperfeições humanas.

Isso é importante porque parte do colonialismo e do racismo foi tratar os autores brancos e europeus como deuses. Significou legitimar nosso trabalho através do recurso ao deles. Uma relação descolonial requer interpelar os autores europeus como seres humanos e suas ideias simplesmente como ideias sujeitas ao criticismo e à evidência como devemos fazê-lo com qualquer outro conjunto de autores e textos.

IHU On-Line – Em que medida ignorar aspectos históricos como racismo e misoginia, considerando seus contextos de emergência, pode ser considerado como uma fuga ao anacronismo? Que impactos tais negações geram no presente?
Lewis Gordon – Uma falácia de boa parte do pensamento euromoderno foi a crença de que ele poderia existir fora das relações com outros pensamentos. O que é evidenciado pela história é a relacionalidade do pensamento. Isso significa que estabelecer novas relações irá criar outras. Dessa maneira, a descolonização do pensamento também tem a ver com a produção de novas formas de pensamento, novas relações, sobre cujas consequências não há garantias de que elas sejam ideais.

IHU On-Line – É possível traçar um panorama geral da filosofia cultural africana? Em que ela se aproxima e se distancia da filosofia eurocêntrica?
Lewis Gordon – Nem todas as formas de centrismo são eurocentrismos. É eurocêntrico presumir que “centrismo” é um fenômeno europeu. Houve muitos centros ao redor do mundo e ao longo do tempo. Isso não faz deles coisas boas. Eles são simplesmente diferentes. O que é crucial sobre as questões que surgem do pensamento diaspórico africano é sua relação íntima com a emergência do pensamento europeu. Em outras palavras, ele está em uma relação dialética com o aumento das contradições do pensamento eurocêntrico. Com efeito, isso significa que um pensamento genuinamente afrocêntrico é uma contradição em termos. Como relacional, ele sempre aponta para seus limites através da admissão daquilo que o transcende.

Afromodernidade, por exemplo, levanta o paradoxo de um passado ausente e de um futuro questionável. É um passado ausente porque não havia razão para que os povos que se tornaram “africanos” e “negros” se considerassem a si mesmos como tais antes das circunstâncias históricas que produziram essa interpretação sobre eles. Há um futuro questionável porque esses são povos e identidades endêmicas ao mundo euromoderno, um mundo que os rejeita. Isso porque, como relacionais, as novas relações que passíveis de serem estabelecidas poderiam vir a criar novos tipos de seres, novos tipos de identidades ou, talvez, um novo modo de interpretar as identidades atuais.

Decadência
Com respeito a ir além da filosofia eurocêntrica, então, a questão requer o questionamento sobre a decadência da filosofia eurocêntrica. Eu tenho argumentado que sua decadência está em seu solipsismo: ela ingenuamente pensa seu universal e, assim, “o mundo”. Particularizá-lo, revelando através de uma consciência duplamente potencializada que é simplesmente uma universalidade artificialmente endossada, significa engajar-se em práticas universalizantes. Essas não são idênticas a “práticas universais”. Elas são o entendimento daquilo que significa aprender de e ir além das contradições. Portanto, defendo uma suspensão teleológica da filosofia, uma filosofia do ser humano para além da filosofia — sim, um paradoxo —, sempre buscando ir mais além por meio da ação de um entendimento intencional de uma realidade engajadora. A realidade, simplesmente, é maior do que tudo o que nós podemos pensar — incluindo a filosofia.

IHU On-Line – Como não reduzir a pluralidade do pensamento de filósofos de origem afrodescendente a um “pensamento negro”?
Lewis Gordon – O erro é fazer disso um critério precedente à ação. Nós devemos simplesmente ponderar suas ideias, ponderar as nossas e aceitar que estamos sujeitos a críticas — às evidências — na medida em que construímos um caminho. A questão, de fato, é como Jane Anna Gordon tem sustentado: a realidade humana é sempre uma mistura viva, uma pluralidade, um mundo no qual há sempre a negação do assim chamado “puro”, como até mesmo em níveis puramente metafísicos o tempo está sempre transcendendo a si mesmo no paradoxo dos presentes futuros. Mais concretamente, este é o motivo pelo qual eu defendo a importância de se compreender política como ação. Política emerge de um mundo de contingência e a pluralidade é uma função daquele aspecto da realidade. O sonho parmenidiano do ser singular requer, simplesmente, a colonização da realidade.

IHU On-Line – Em que consiste pensar a “colonização da razão”?
Lewis Gordon – A colonização da razão é a aspiração à racionalidade instrumental. A ideia é que a razão nem sempre “se comporta”. Como aquilo que também avalia a racionalidade, a questão se levanta: A razão é racional? Razão, sustento eu, como aquilo que avalia até mesmo ela própria, deve ir para além de si mesma e, portanto, não é maximamente consistente. O esforço para alcançar uma racionalidade suprema engendra a colonização da razão. Mas, como sabemos, “ela” continua a ser desafiadora.

IHU On-Line – De que modo é possível descolonizar o pensamento em uma área como a Filosofia, conhecida por seus cânones ocidentais?
Lewis Gordon – Paget Henry e eu (entre outros) temos defendido que podemos fazê-lo por não situar nossa legitimidade em tais termos. Ao invés de procurar reconhecimento de duplicação dos cânones ocidentais, é mais importante trabalhar, estudar, procurar, ver, pensar, jogar, viver, amar, sentir; em outras palavras, comprometer-se com o mundo para além de tais reduções. Essa é uma das razões pelas quais eu escrevi Disciplinary Decadence: Living Thought in Trying Times (Colorado: Paradigm Publishers, 2007). A tragédia é que esqueçamos nossa liberdade, nossa responsabilidade por nosso pensamento, por aquilo que pensamos. Em outras palavras, nós precisamos fazer o trabalho que precisa ser feito. Não há substituição. Não é suficiente dizer que há ideia e pensadores “do” e “no” Sul Global. Precisamos nos comprometer valorosamente uns com os outros e valorizar sendo valorizados uns pelos outros. Nós precisamos, em outras palavras, descolonizar as condições normativas do pensamento ele mesmo.

IHU On-Line – Na relação entre “Colônia” e “colonizado”, Frantz Fanon afirma que a violência é o remédio do colonizado contra a acusação de inferioridade. Você acredita que esta postura combativa ainda pode ser aplicada aos tempos atuais?
Lewis Gordon – Grande parte das pessoas não entende o que Fanon quer dizer por “violência”. Na verdade, ele detesta a violência. Seu ponto era este: dominadores e colonizadores consideram sua situação como sendo justa. Isso significa que eles consideram injusto qualquer esforço para mudá-la. A força justa não é considerada violência. Assim, qualquer esforço para a descolonização é considerada violenta. Provar que alguém não é violento significa, então, não engajar-se na descolonização.

O ponto de Fanon, portanto, é que a descolonização é inerentemente violenta. Ele não estava se referindo simplesmente a armas e danos físicos. Ele estava se referindo ao conceito mesmo de mudança social em nome dos danados da Terra. Gastar tempo “provando” que alguém não é violento é então uma perda de tempo. A tarefa é construir uma sociedade não baseada na contínua violência da colonização. Para o colonizado, o paraíso do colonizador é um paraíso de contínua injustiça e violência. Se nós rejeitamos a ideia de que a vida do colonizador é inerentemente mais valiosa do que a do colonizado, então devemos fazer algo acerca disso. O ponto de Fanon era sóbrio e adulto: não há tal coisa como uma descolonização sem perdedores. Mas nós devemos lembrar que Fanon não considerava a descolonização como o fim da história. Para ele, ela era simplesmente um começo do real trabalho a ser feito: inaugurar um mundo de melhores relações humanas.

IHU On-Line – De que ordem eram as críticas de Hannah Arendt a Frantz Fanon em On Violence?
Lewis Gordon – O racismo de Arendt apareceu em sua crítica em Sobre a violência. Ela realmente gastou mais tempo em Sartre do que em Fanon. Por quê? Com efeito, ela considerava o homem branco o lugar do pensamento genuíno. Se ela tivesse lido Fanon, ela teria descoberto que eles tinham muito mais coisas em comum. Por exemplo, ambos acreditavam na política, na distinção entre a vontade em geral e a vontade geral (ao modo de Rousseau), na distinção entre força e violência legítima, na questão da dignidade humana e muito mais. Mas seu eurocentrismo prevaleceu. E ainda pior, seu racismo foi tal que ela podia ver-se preocupada mais com os Boers tornando-se semelhantes às populações nativas do sul da África do que com o fato de que eles estavam colonizando e massacrando aquelas pessoas.

Simplesmente faltou a Arendt a capacidade de ver os portadores da civilização europeia como violentos, mesmo na esteira do Holocausto. Fanon, entretanto, estava entre aqueles soldados que estavam libertando os ingratos prisioneiros dos campos de concentração (ingratos porque eles teriam preferido, em alguns casos, ter sido libertados por brancos), entre aqueles que estavam trabalhando em solidariedade com os árabes que odiavam os negros, trabalhando através de lutas até mesmo contra abusos domésticos (um assunto que discuto em meu livro What Fanon Said): ele olhou para o cerne do problema da violência como uma transformação peculiarmente social de força e brutalidade.

Jesuítas e a batalha que os templários não venceram

Por Andriolli Costa
Publicado em 13-11-2014 no IHU

Em 1773 um breve papal, intitulado Dominus ac Redemptor, suprime a existência da Companhia de Jesus. O documento, assinado pelo papa Clemente XIV, principiava com um levantamento das demais ordens religiosas suprimidas pelos papas. O breve não trazia nenhuma acusação precisa sobre os crimes cometidos pelos jesuítas, mas argumentava que assim como Cristo – “que não é Deus da discórdia, mas da paz e do amor” – deu aos apóstolos o uso da palavra da reconciliação, era dever papal suprimir aqueles que promovessem a desordem e a desarmonia dentro da igreja. Elencava, desta forma uma série de ordens suprimidas, iniciando com os Templários e finalizando, por fim, com a Companhia de Jesus.

A supressão da Ordem dos Cavaleiros Templários, promovida em 1307 pelo papa Clemente V, alimenta até hoje o imaginário do ocidente, e se reflete em livros, filmes e teorias conspiratórias. No entanto, ainda que tentativas para a restauração da Ordem encontre ecos ainda em 2008 (quando supostos herdeiros cobraram tratativas com o Bento XVI), a discussão em nada avançou. Com isso em vista, o professor e historiador português José Eduardo Franco provoca: “Por que a restauração da Companhia de Jesus ocorreu apenas 40 anos depois, enquanto outras ordens jamais foram restauradas? Por que o retorno dos jesuítas foi inevitável?”.

O professor trouxe tais questionamentos durante a conferência O mito negro dos jesuítas em Portugal e no Brasil: Origens, Evolução e metamorfose do antijesuitismo, que ocorreu nesta terça-feira (11) na Unisinos. O evento faz parte da programação do XVI Simpósio Internacional IHU – Companhia de Jesus. Da supressão à restauração. De acordo com Franco, os motivos que levaram à restauração da Companhia são da ordem da resposta aos desafios da modernidade.

A Ordem respondia adequadamente a uma sociedade globalizada, baseada na cooperação em rede, e que incentivava o empreendedorismo inato e o investimento na formação acadêmica e científica. Além disso, a metodologia pastoral jesuíta de aculturação – isto é, do diálogo hibrido entre outras culturas e o cristianismo – foi duramente criticado a sua época, mas passou a ser vista como uma estratégia aceitável. Tanto que em 1939 o Papa Pio XII atenuaria o banimento da prática, aceitando os ritos chineses.

Franco refletiu ainda sobre a ferrenha oposição à Companhia de Jesus, que levou de início a supressão. Algo que acompanha a Ordem desde o seu surgimento, com tensões internas contra o próprio fundador Inácio de Loyola – que chegou a ser investigado e preso pela Inquisição. Pelas campanhas de ódio e difamação, o professor reflete que tal ódio assemelha-se ao anti-semitismo. Exemplo disso é a divulgação do conhecido Monita Secreta – “Instruções Secretas dos Jesuítas”, que alegava apresentar instruções para como os jesuítas poderiam construir seu império a partir das ruínas de todos os estados nacionais. “É bastante semelhante aos Protocolos Secretos dos Sábios de Sião, que alertam para a ambição de poder do povo judeu”, propõe.

Citando Umberto Eco, José Eduardo Franco alerta: “Refletir sobre essas complexas relações entre leitor e história, ficção e vida, pode constituir uma forma de terapia contra o sono da razão que gera monstros”. Para ele, a única forma de explicar sentimentos antijesuítas mesmo nos dias de hoje é permitir que a razão adormeça.

Quem é José Eduardo Franco?
José Eduardo Franco é historiador, poeta e ensaísta especializado em História da Cultura. Possui doutorado em História e Civilização pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e em Cultura pela Universidade de Aveiro. Professor do Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa, ele coordena atualmente um vasto projeto de pesquisa, levantamento e edição dos Documentos sobre a História da Expansão Portuguesa, existentes no Arquivo Secreto do Vaticano. É também membro da comissão coordenadora do projeto da edição crítica da Obra Completa do Padre Manuel Antunes.

Franco é autor de diversas publicações, das quais destacamos: O Mito dos Jesuítas em Portugal, no Brasil, no Oriente e na Europa (Lisboa: Gradiva, 2007), Vieira e as mulheres: Uma visão barroca do universo feminino (Porto: Campo das Letras, 2007) e Jesuítas e a Inquisição: cumplicidades e confrontações (Lisboa: Aletheia, 2007).

Santiago Castro-Gómez: Pensar a América Latina para além do latino-americanismo

Professor Santiago Castro-Gómez debate o pensamento produzido em nosso continente desde uma perspectiva genealógica

Por: Ricardo Machado e Andriolli Costa
Publicado na IHU On-Line 459

0Na análise do professor e pesquisador Santiago Castro-Gómez, a América Latina não deve ser tratada como um espaço de unidade cultural contínua e unívoca, mas, sim, entendida a partir de suas complexidades. “Precisamos compreender esses processos a partir de nós mesmos, da nossa história, e me parece importante traçar essa história com critérios e tomá-los da realidade latino-americana, o que não significa cair em latino-americanismo”, sustenta Santiago, em entrevista concedida pessoalmente à IHU On-Line, quando esteve na Unisinos participando do Ciclo de Conferências 2014: A “questão pós” nas Ciências Humanas, organizado pelo PPG em Ciências Sociais da universidade.

Diante de tal cenário, o professor explica, primeiro, as diferenças conceituais entre colonialismo e colonialidade, para avançar em sua defesa ao pensamento descolonial. “Colonialismo faz referência à presença militar, política e administrativa de uma potência em um território estrangeiro (…). Colonialidade faz referência às gerências do colonialismo mesmo depois que ele desaparece. O racismo é uma herança colonial, bem como certos modos de paternalismo e o machismo”, esclarece. “É preciso deixar claro que o pensamento descolonial não impõe a exclusão de teorias ou pensamentos provenientes de outras partes do mundo. Ou seja, o pensamento descolonial não sugere que devemos criar categorias propriamente latino-americanas ou brasileiras, por exemplo”, complementa.

Santiago Castro-Gómez é graduado em Filosofia na Universidade Santo Tomás, em Bogotá, na Colômbia. Realizou mestrado também em Filosofia na Universidade de Tübingen e, posteriormente, doutorou-se na Johann Wolfgang Goethe-Universität de Frankfurt, ambas na Alemanha. Atualmente é professor de Filosofia na Universidade Javeriana, em Bogotá. É autor de diversas obras, entre elas, Crítica de la razón latino-americana (Bogotá: Editorial Pontificia Universidad Javeriana, 2011 – 2ª ed) e La hybris del punto cero. Ciencia, raza e ilustración en la Nueva Granada (1750-1816) (Bogotá: Universidad Javeriana, 2005).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais eram os avanços e os limites da visão filosófica propagada pelo Grupo de Bogotá para compreender os dilemas latino-americanos?
Santiago Castro-Gómez – Explico primeiramente o que foi o Grupo de Bogotá. Trata-se de um conjunto de filósofos da Universidade São Tomás de Bogotá dos anos 1970 que questionou se existia ou não uma filosofia latino-americana. Se existia uma filosofia que fosse capaz de dar conta dos problemas específicos da América Latina e que se diferenciasse, tanto nos métodos quanto nos conteúdos, da tradicional filosofia europeia ocidental.

Quanto ao ponto de vista do grupo, houve acertos e dificuldades. Um dos acertos foi pensar uma filosofia assentada em um contexto concreto, ou seja, que a filosofia, o pensamento e a razão estivessem situados empiricamente. Assim, deixa-se de pensar a filosofia como algo abstrato, que não tem lugar, rompendo com a ideia de que os problemas filosóficos no Japão e na América Latina, por exemplo, são iguais. Este Grupo de Bogotá fez esse trabalho muito bem, porque defendia que não se pode separar o filósofo do meio onde ele está pensando.

O problema, entretanto, é o modo como o grupo entendia a América Latina, pois tinha uma percepção muito homogênea e unificada; pensava-se que o continente possuía um âmbito cultural de continuidade. Isto é, não se tinha em conta as particularidades e multiplicidades, o que parece ter sido um dos grandes problemas.

IHU On-Line – De que forma esta visão divergia do pensamento alemão e dos filósofos da pós-modernidade?
Santiago Castro-Gómez – O Grupo de Bogotá se nutria teoricamente da Filosofia da Libertação, de Enrique Dussel , e, por outro lado, do pensamento historicista do mexicano Leopoldo Zea , cuja perspectiva é calcada no historicismo alemão, tradição que subsidiava o pensamento e a razão. Inclusive, o pensamento de Dussel tinha certa filiação ao pensamento de Heidegger . Então o Grupo de Bogotá, apesar de proclamar a necessidade de uma filosofia latino-americana independente do pensamento europeu, tinha suas fontes embasadas no historicismo alemão e na antologia fundamental de Heidegger.

IHU On-Line – Que diferenças há entre esses autores alemães e os pós-modernos?
Santiago Castro-Gómez – Uma grande diferença é, precisamente, que o Grupo de Bogotá não dava ênfase às singularidades e às multiplicidades, ao contrário, eles tinham uma imagem de América Latina muito “englobante”, totalizante, como um metarrelato latino-americanista. Por outro lado, continuavam muito vinculados à filosofia moderna dos sujeitos, seguiam pensando que o problema do continente era a emancipação dos sujeitos, fundada na filosofia moderna. Então o pensamento pós-moderno passou a romper com este pensamento iluminista.

IHU On-Line – É possível promover um diálogo entre estas tradições filosóficas para buscar uma melhor compreensão da complexidade?
Santiago Castro-Gómez – Sem dúvida. Creio que há uma linha da filosofia alemã que se pode reconstruir desde Nietzsche até a Escola de Frankfurt e a qual seria útil recuperar para pensar os problemas contemporâneos. Isso porque Nietzsche é um pensador fundamental, assim como o são os primeiros escritos da Escola de Frankfurt , dos anos 1930 e 1940; ou seja, há uma vertente do pensamento alemão que segue importante até hoje. Creio que seja a vertente da qual se valeu Foucault , que recorre muito a Nietzsche, mas também com muitos trabalhos da Escola de Frankfurt, o que considero importante e frutífero para pensar a contemporaneidade.

IHU On-Line – Qual a diferença entre colonialismo e “colonialidade”?
Santiago Castro-Gómez – São dois conceitos distintos porque colonialismo faz referência à presença militar, política e administrativa de uma potência em um território estrangeiro, conforme a concepção clássica do colonialismo. Isto é, a ocupação de um território estrangeiro e imposição das estruturas de poder e dominação política e econômica. Colonialidade faz referência às gerências do colonialismo mesmo depois que ele desaparece. O racismo é uma herança colonial, bem como certos modos de paternalismo e o machismo. Há uma série de heranças que persistem mesmo após o colonialismo.

IHU On-Line – Qual a importância do estabelecimento de uma matriz filosófica própria à realidade latino-americana para promover um pensamento descolonial?
Santiago Castro-Gómez – É preciso deixar claro que o pensamento descolonial não impõe a exclusão de teorias ou pensamentos provenientes de outras partes do mundo, esta é uma questão importante. Ou seja, o pensamento descolonial não sugere que devemos criar categorias propriamente latino-americanas ou brasileiras, por exemplo. Já o pensamento colonial tem mais a ver com o uso de ferramentas teóricas para resolver ou pensar problemas locais que têm muito a ver com a situação destes países na América Latina. As ferramentas, porém, podem vir de qualquer parte, o que importa são as formas como se utilizam os modelos teóricos.

Algumas pessoas me criticam porque falo de descolonialidade mas uso Foucault. Porém, não vejo nada de contraditório nisso. Poderia usar Marx , também, sem problemas. A colonialidade tem mais a ver com certa “reverência” às soluções que vêm da Europa ou certo ponto de vista de que podemos transpassar as soluções empregadas em outras partes do mundo sem ajustes à nossa própria realidade.

conferencia-en-la-biblioteca-nacionalIHU On-Line – Em que medida o pensamento desconstrucionista de Derrida ajuda a pensar essa complexidade?
Santiago Castro-Gómez – Não tenho me ocupado muito com Derrida , mas me parece que a desconstrução é uma ferramenta útil, porque não é possível nenhum processo emancipatório sem desconstrução. Tenho me dedicado mais ao método genealógico de Foucault, mas reconheço que há um paralelo entre a desconstrução derridiana e a genealogia foucaultiana. Ambos os métodos são desconstrutivos em última medida, pois a genealogia busca examinar historicamente as distintas linhas que nos compõem, a forma como temos sido construídos ao longo do tempo e tentando separar estas coisas. A genealogia busca compreender as condições da experiência, porém tais condições são históricas, não estão claras em uma subjetividade transcendental ou identidade cultural, mas são condições que são explicadas pelo tempo, e a genealogia é o que faz a história dessas condições.

IHU On-Line – Quais os perigos de, ao buscar a fuga do pensamento colonial, incorrer na recusa de diálogos possíveis?
Santiago Castro-Gómez – Há um risco muito grande de um essencialismo de pessoas que pensam que o pensamento descolonial pressupõe se recolher tão somente a uma matriz ameríndia, pré-colombiana. Trata-se de um equívoco muito grande. O impacto disso é uma certa radicalização política, de suspeitar sempre de tudo que vem de fora. Há um risco de idealização de determinados sujeitos, os indígenas, os afrodescendentes, tratando de colocar nesses grupos pretensões excessivas em termos políticos, como se as subjetividades dessas formas de existência pudessem trazer soluções emancipatórias para todos. Isso é um movimento político muito perigoso.

IHU On-Line – Por que o ideal moderno parece ser tão pouco aplicável no século XXI?
Santiago Castro-Gómez – A nossa realidade foi modelada pela modernidade. Se olharmos a história da América Latina, perceberemos que ela é constituída pela formação dos Estados-Nação, a incorporação de nossas economias ao capitalismo, a legitimação das entidades modernas como a educação e os meios de comunicação. Isto é, pensar a história da América Latina sem os processos de institucionalização parece impossível. A América Latina já é um projeto da modernidade. O perigo é, justamente, a ficção de acreditar que o nosso continente pode ser pensado por fora da modernidade, porque há, nesse ponto de vista, um grande risco analítico.

Entretanto, como a nossa forma de inserção à modernidade foi por meio da matriz colonial, porque nos integramos à modernidade devido à expansão colonial europeia, gerou-se uma confusão sobre a forma como a modernidade se instaurou na Europa e nas nossas nações. Inclusive é preciso entender como os processos de colonização avançaram na América Latina sem querer compreendê-los a partir da uma racionalidade pura. Precisamos compreender esses processos a partir de nós mesmos, da nossa história, e, por exemplo, me parece importante traçar essa história com critérios e tomá-los da realidade latino-americana, o que não significa cair em latino-americanismo.

Márcia Amantino: Sacerdotes, administradores e empreendedores. As bases econômicas do projeto missionário jesuíta

Marcia Sueli Amantino resgata o modo como os jesuítas, homens de seu tempo, conquistaram a autonomia de seus Colégios por meio de concessões, arrendamentos e trabalho escravo

AnchietaeNóbrega

Por: Ricardo Machado e Andriolli Costa
Publicado na edição 458 da IHU On-Line (2)

Uma complexa estrutura econômica fundava as bases do projeto missionário jesuíta na América portuguesa. Com os planos de conversão de milhares de almas e na educação de um grupo privilegiado de colonos, era preciso que cada colégio angariasse fundos que lhes garantisse independência econômica. Conforme a historiadora Marcia Sueli Amantino, várias foram as soluções encontradas: “Além dos imóveis urbanos que eram alugados aos moradores das cidades, angariaram, através de doações reais ou particulares, imensas extensões de terras onde desenvolveram variada produção de gêneros primários e prestaram diversos serviços à população ou às autoridades”.

Os colégios, mais do que espaços de sacerdócio, ensino, socorro de enfermos, ou mesmo venda de carnes, tornavam-se o centro administrativo que controlava os interesses econômicos das fazendas, dos aluguéis, dos arrendamentos, da compra e venda de terras, gado e escravos. Além disso, “ao conhecerem melhor os diferentes grupos indígenas e perceberem um pouco mais sobre suas culturas, vistas muitas vezes como selvagens e inconstantes, perceberam que precisariam estabelecer regras mais eficientes de catequização, criando os aldeamentos”. Neles, os índios convertidos trabalhavam para o aldeamento, para os religiosos e para os colonos mediante um salário. Serviriam também “como mão de obra para as obras públicas, socorrendo as regiões em caso de ataques de outros índios e de estrangeiros”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, a professora ressalta que a atuação da Companhia de Jesus estava em consonância com o horizonte social de sua época. “Assim, não é possível imaginar que em suas fazendas poderia haver algum outro tipo de trabalhador que não o escravo ou, no mínimo, um trabalhador compulsório. A base do crescimento econômico da ordem no período colonial foi a utilização da mão de obra escrava, assim como de qualquer outra ordem religiosa ou de indivíduo leigo”. O questionamento, no entanto, sempre ocorreu. E definir quem poderia e quem não poderia ser escravo, tanto entre índios quanto entre negros, era uma preocupação da Companhia.

Marcia Sueli Amantino possui graduação em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF, com mestrado e doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Concluiu ainda pós-doutorado pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e pela Universidade de Évora, em Portugal. Atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Salgado de Oliveira – Universo, e lidera o Grupo de Pesquisa Sociedades escravistas nas Américas.

Amantino é co-coordenadora da Rede de Grupos de Pesquisa Escravidão e mestiçagens e do Centro de Estudos da presença africana no Mundo Moderno, liderados pelo prof. Eduardo França Paiva (UFMG). É também organizadora de diversos livros, entre eles Santa Cruz: de legado dos jesuítas a pérola da Coroa (Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013), Povoamento, Catolicismo e escravidão na Antiga Macaé (séculos XVI-XIX) (Rio de Janeiro: Apicuri, 2011) e Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços (São Paulo: Annablume, 2011).

A professora coordena o Seminário temático simultâneo A Companhia de Jesus e as bases econômicas de seu projeto missionário na América portuguesa, na Unisinos, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. O evento, que se estende de 11 a 13 de novembro, das 9h às 12h, faz parte da programação do XVI Simpósio Internacional IHU – Companhia de Jesus. Da supressão à restauração. A programação completa pode ser encontrada em http://bit.ly/CiaJes2014.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual era o projeto missionário dos jesuítas na América portuguesa?
Marcia Sueli Amantino – O projeto missionário dos jesuítas na América portuguesa era o de salvar as almas dos colonos que, em teoria, já eram cristãos, trazê-los novamente para o seio da igreja e dos comportamentos católicos, e converter os indígenas à fé católica por meio do ensinamento do cristianismo. Inicialmente, acreditaram que os índios eram indivíduos puros e fáceis de serem convertidos. Porém, com o passar do tempo e com as inúmeras dificuldades enfrentadas por parte das resistências indígenas, os religiosos perceberam que a tarefa não era tão simples assim e tiveram que adaptar e negociar suas práticas cotidianas de conversão.

Ao conhecerem melhor os diferentes grupos indígenas e perceberem um pouco mais sobre suas culturas, entendidas não mais de forma positiva, mas vistas muitas vezes como selvagens e inconstantes, perceberam que precisariam estabelecer regras mais eficientes de catequização, criando os aldeamentos. Estes seriam terras ocupadas pelos índios sob a administração religiosa e temporal dos jesuítas. Os índios deveriam ser convertidos, trabalhar para o aldeamento, para os religiosos e para os colonos mediante um salário e servir também como mão de obra para as obras públicas, socorrendo as regiões em caso de ataques de outros índios e de estrangeiros.

Cavalaria_GuaraniIHU On-Line – Como, na América portuguesa, os jesuítas construíram suas bases econômicas?
Marcia Sueli Amantino – A base econômica dos jesuítas na América portuguesa foi construída, inicialmente, com a obtenção de sesmarias doadas pelos governadores gerais, na segunda metade do século XVI. Normalmente, os motivos alegados para essas doações eram os constantes e essenciais serviços prestados pelos religiosos na conversão dos índios e a consolidação da conquista numa dada região, bem como pelos papeis desempenhados na direção dos grupos indígenas que lutavam ao lado das autoridades.

Nessas sesmarias, os inacianos erguiam seus colégios e igrejas e, posteriormente, mais afastadas, suas fazendas. O projeto missionário jesuítico baseado na conversão de milhares de almas e na educação de um grupo privilegiado de colonos fez com que cada colégio necessitasse angariar fundos que lhes garantisse independência econômica. Várias foram as soluções encontradas por cada colégio e sempre em consonância com as práticas sociais e econômicas locais. Além dos imóveis urbanos que eram alugados aos moradores das cidades, angariaram, através de doações reais ou particulares, imensas extensões de terras onde desenvolveram variada produção de gêneros primários e prestaram diversos serviços à população ou às autoridades.

Os colégios eram, portanto — além de um espaço físico onde os padres ministravam suas aulas, socorriam enfermos, vendiam carnes, hospedavam pessoas importantes e, é claro, praticavam seus dogmas religiosos —, um centro administrativo que controlava os interesses econômicos das fazendas, dos aluguéis, dos arrendamentos, da compra e venda de terras, gado e escravos, bem como dos interesses dos aldeamentos tanto no que se refere aos aspectos religiosos quanto aos temporais.

Após o estabelecimento dos aldeamentos, esses tornaram-se também um motivo a mais para a entrega de terras para os inacianos, com a justificativa de que eram para a manutenção de grupos crescentes de nativos que estavam tornando-se cristãos e que atendiam e defendiam os colonos e as vilas e cidades em seus entornos.

Além das terras, os inacianos recebiam também doações de produtos, animais, imóveis e escravos. A partir dessas benesses, desenvolveram uma economia bastante eficiente e conseguiram, como poucos, mantê-la, ainda que passando em alguns momentos por graves crises financeiras.

IHU On-Line – Como foi a relação entre os jesuítas e os indígenas durante os séculos XVI e XVII por ocasião da chegada da Companhia de Jesus ao Rio de Janeiro?
Marcia Sueli Amantino – Na região onde mais tarde foi fundada a cidade do Rio de Janeiro, era comum, desde o século XVI, o desembarque de estrangeiros que se aliavam aos grupos indígenas inimigos dos portugueses e passavam a comercializar e a montar feitorias no litoral. Há inúmeras notícias de que franceses, flamengos e ingleses negociavam com eles e obtinham grandes carregamentos de pau-brasil. São comuns na documentação do século XVII e seguintes as constantes reclamações por parte dos moradores ou autoridades destas regiões de que os estrangeiros associados aos índios frequentavam o litoral, vivendo alguns, inclusive, entre os nativos.

O objetivo maior das autoridades para estas regiões era estabelecer núcleos populacionais que fossem não só capazes de desbaratar os contatos travados entre os estrangeiros e os indígenas, mas também conquistar estes últimos e torná-los súditos da Coroa Portuguesa, ou seja, aliados. A presença de estrangeiros colocava em perigo o domínio não só sobre esta área, mas também se receava que, a partir de pontos específicos deste litoral, os invasores conseguissem controlar as rotas do Rio da Prata, acessando, assim, a prata que saía de Potosi. Logo, esta era uma área estratégica no Sul do Brasil que precisava ser mantida a qualquer custo.

Na capitania do Rio de Janeiro, os jesuítas aportaram durante as tentativas de expulsão dos franceses e controle dos índios Tamoios na segunda metade do século XVI, e, vencidas as dificuldades iniciais, obtiveram em 1565, de Estácio de Sá, a primeira doação de terras na região com o intuito de edificarem seu colégio. Eram as terras chamadas de Iguaçu. Nela, além do colégio, foram estabelecidas as fazendas de São Cristóvão, o Engenho Velho e o Engenho Novo. Para tentar impedir as alianças entre índios e estrangeiros e garantir seu domínio, a coroa portuguesa lançou mão de algumas estratégias que iam além dos ataques às aldeias indígenas hostis: os aldeamentos jesuíticos.

Aldeamentos
Os aldeamentos foram um importante passo neste sentido, posto que contribuíram para a pacificação dos índios, os retiveram como mão de obra e, acima de tudo, serviram como barreiras aos avanços de outros grupos hostis e impediam o desembarque de estrangeiros. Além disso, eram também centros fornecedores de homens para quaisquer necessidades. Estes índios, por exemplo, foram usados para impedir a entrada de piratas no litoral de Cabo Frio ou expulsar os que por ventura conseguissem desembarcar. Os índios aldeados de São Pedro do Cabo Frio tornaram-se especialistas nesta tarefa. Em 1617, no ano seguinte e, novamente, em 1630, conseguiram derrotar e expulsar os holandeses que buscavam Pau-brasil na região. Graças a isto, os jesuítas conseguiram as doações das sesmarias onde, anos depois, seriam fundadas as fazendas de Macaé, do Colégio e de Campos Novos. A justificativa para a solicitação era a de que os índios haviam sido essenciais na manutenção da área e que a cada dia aumentava o seu número e, portanto, precisavam de mais espaços. Os aldeamentos serviram, ainda, para proteger a cidade do Rio de Janeiro de tentativas de invasões de estrangeiros e de outros grupos indígenas vindos do interior.

Analisando este panorama, identifica-se que já no século XVII havia do lado Leste da cidade do Rio de Janeiro dois aldeamentos e quatro fazendas jesuíticas. Observando a distribuição geográfica das fazendas, verifica-se que estavam situadas em pontos estratégicos muito próximos aos aldeamentos em cada uma das regiões. A Fazenda de Santo Ignácio dos Campos Novos ficava localizada na região de Búzios, bastante próxima do aldeamento de São Pedro do Cabo Frio. A Fazenda de Sant’Anna, também chamada de Fazenda de Macaé, estava entre a do Colégio de Campos dos Goitacazes e a de Nossa Senhora da Conceição de Campos Novos. As três possuíam fortes ligações entre si. No Colégio, eram criados rebanhos para, posteriormente, serem enviados para engorda nas duas outras. De lá, saíam para abastecer o mercado do Rio de Janeiro. Numa região um pouco mais afastada deste complexo, verifica-se que o mesmo padrão ocorreu. Próximo ao aldeamento de São Barnabé havia a Fazenda da Papucaia. Os exemplos podem ser estendidos aos outros aldeamentos. São Lourenço ficava muito próximo à Fazenda do Saco de São Francisco Xavier. O aldeamento de São Francisco Xavier de Itinga, depois chamado de Itaguaí, se relacionava de maneira muito próxima com a Fazenda de Santa Cruz. Além destas fazendas maiores, também existiam os Engenhos que ficavam mais próximos à cidade do Rio de Janeiro e eram responsáveis por parte de seu abastecimento e dos aldeamentos em caso de necessidades, não apenas com alimentos, mas também com madeiras e peças de olarias.

missao-jesuiticaIHU On-Line – De que maneira funcionava a estrutura de poder econômico e social construída pelos jesuítas desde o século XVI no Brasil?
Marcia Sueli Amantino – Os religiosos da Companhia de Jesus estavam inseridos nas lógicas sociais, econômicas e políticas do mundo colonial, e eram espaços agrários pautados por relações escravistas que lidavam com representações ligadas ao funcionamento desta sociedade. Administravam suas propriedades agrárias, transformando-se em senhores de terras e de cativos, ao mesmo tempo que eram membros de um universo religioso e como tal possuíam dogmas e comportamentos específicos que as sociedades, de uma forma ou de outra, esperavam que eles seguissem. Havia ainda outro complicador, pois ao administrarem os aldeamentos acabavam por controlar centenas de braços aptos ao trabalho e definiam quando, como, para quem e por quanto os índios trabalhariam.

Já na metade do século XVIII a Companhia de Jesus era a instituição que possuía o maior número de escravos nas Américas e milhares deles se encontravam na América lusa e na capitania do Rio de Janeiro; essa mão de obra se manteve estável por toda a centúria. Em 1759, no momento da expulsão dos jesuítas, eles possuíam, na capitania do Rio de Janeiro, cerca de 3.400 escravos. Essa mão de obra produzia para abastecer os aldeamentos/missões, as cidades próximas, ou mesmo outras localidades, mas, acima de tudo, era responsável pela geração de lucros para os Colégios dos Jesuítas e para a Companhia de Jesus. Este enriquecimento será uma das justificativas para as constantes queixas proferidas contra a Companhia de Jesus. Acreditava-se que os inacianos teriam se distanciado de seus dogmas e se tornado ricos fazendeiros e/ou comerciantes.

Cada fazenda possuía suas próprias características e elementos constitutivos. Entretanto, havia alguns itens que estavam presentes em todas elas. Com exceção de algumas que acabaram ficando muito próximas aos centros urbanos, todas as outras eram centros criadores de bovinos, equinos, ovinos e caprinos. Contavam também com matas de onde retiravam madeiras que abasteciam as cidades e eram usadas na construção de casas, templos, edifícios públicos e também na fabricação de embarcações, que normalmente eram navegadas pelos índios dos aldeamentos/missões.

Produziam também produtos agrícolas típicos das regiões. Além disso, as fazendas contavam com espaços destinados aos trabalhos nas ferrarias, carpintarias e olarias, onde trabalhavam os escravos mais habilidosos e mais caros dos plantéis. Para os que ficavam doentes, existiam as enfermarias/hospitais com boticas repletas de remédios e unguentos. Os livros que ensinavam a utilização destes, bem como os outros, ficavam nas bibliotecas, espaços no interior das casas dos padres, sedes de cada uma das fazendas. Próximo a elas, havia a igreja consagrada ao protetor da fazenda, as senzalas coletivas e as casas separadas para as famílias dos escravos, que eram bastante numerosos. Estes possuíam suas próprias roças e gado, que podiam ser vendidos nas feiras.

A montagem e manutenção destas estruturas econômicas agrárias por parte da Companhia de Jesus foi sempre justificada pela necessidade de gerar riquezas para que com ela ocorressem as condições propiciadoras do crescimento econômico, político e social destes religiosos na Colônia e, por que não, do próprio projeto colonizador.

A situação para os jesuítas não mudou muito do século XVI até a primeira metade do século XVIII e a documentação dá conta deste poder exercido pelos inacianos através do controle local e regional. Todos os seus complexos econômicos propiciavam um grande poder político e econômico que só será alterado, no caso da América portuguesa, a partir de 1759 e em 1767 em terras da América espanhola, momentos em que foram expulsos.

A conjuntura não era mais a mesma dos séculos iniciais e diferentes categorias sociais começaram a pressionar e os jesuítas foram identificados como elementos de perigo às Coroas. Daí para suas expulsões foi um passo. Suas fazendas, escravos e bens foram confiscados e, posteriormente, leiloados. A expulsão dos mesmos e o confisco de seus bens definirão mudanças significativas nos rumos da catequese, das relações de poder e no controle sobre as terras e mão de obra. Antes, os jesuítas eram vistos como os únicos capazes de lidar com os indígenas e transformá-los em vassalos dos reis. Mas, a partir de uma série de mudanças significativas ao longo do século XVIII, a situação da Companhia de Jesus alterou-se radicalmente. De aliados, tornaram-se inimigos das principais monarquias católicas.

IHU On-Line – Até que ponto a ascensão da Companhia de Jesus na América Latina, especialmente no Brasil, deu-se por conta de sua perspectiva missionária e até que ponto foi por conta dos ataques a colonos e indígenas e à base da escravização?
Marcia Sueli Amantino – É importante perceber que a atuação da Companhia de Jesus no que diz respeito às suas práticas econômicas estava em consonância com o que fazia o restante da sociedade colonial. Assim, não é possível imaginar que em suas fazendas poderia haver algum outro tipo de trabalhador que não o escravo ou, no mínimo, um trabalhador compulsório. A base do crescimento econômico da ordem no período colonial foi a utilização da mão de obra escrava, assim como de qualquer outra ordem religiosa ou de indivíduo leigo. O que sempre foi questionado por membros da Companhia de Jesus era quem poderia ou deveria ser escravo, tanto para os índios quanto para os africanos. Nos dois casos, deveriam ser os capturados em guerras justas. No caso dos índios, os obtidos por resgates, também chamados de índios de corda, poderiam ser escravos por um determinado tempo para cobrirem os gastos com sua salvação. Como para os africanos era quase impossível saber quem havia sido capturado em guerra justa, a Companhia de Jesus chegou à conclusão de que não valia a pena fazer esse tipo de pergunta a um desembarcado. O melhor a fazer, já que com a escravidão ele recebia uma chance de ser salvo por meio da conversão ao cristianismo, seria tratar o escravo bem e transformá-lo em um bom cristão.

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IHU On-Line – Quem foram os principais opositores aos jesuítas no Brasil? Que conflitos de interesse havia entre a corte portuguesa e a Companhia de Jesus?
Marcia Sueli Amantino – Desde os anos iniciais da chegada dos jesuítas à América portuguesa, ocorreram alguns conflitos envolvendo os interesses dos religiosos, de um lado, e os colonos, de outro. A principal causa disso era, sem dúvida, a questão do controle sobre a mão de obra indígena. Os colonos queriam utilizar o maior número possível de indígenas como escravos, e os religiosos, tendo à frente alguns padres jesuítas, acreditavam e defendiam que apenas os aprisionados legalmente, por meio das guerras justas, poderiam tornar-se escravos. As leis de liberdade geral dos índios, é claro, transformavam a todos, pelo menos, em teoria, em homens livres. Os jesuítas lutavam para que pelo menos as leis fossem respeitadas e isso gerava uma série de disputas com os colonos e mesmo com as autoridades.

Entretanto, os padres jesuítas tiveram que lidar também com os questionamentos sobre seus privilégios econômicos. A produção dos inacianos, desde a provisão real de 17 de março de 1576, gozava da vantagem real de não ser taxada. Segundo esse documento, em função dos serviços prestados à Coroa na conversão dos gentios, no ensino e doutrina dada à população e nos benefícios espirituais deles decorrentes, e contando ainda que, para isto tudo, era necessária uma grande despesa por parte dos Colégios, o rei determinava que a partir daquela data não fossem mais cobradas taxas na saída ou entrada de produtos. Bastava para isso que os religiosos comprovassem que os artigos eram seus.

Além disso, tinham permissão para desfrutar de embarcações próprias que transportavam de um lado para outro sua produção, sem qualquer fiscalização das autoridades. Por tudo isso, seus artigos possuíam valores muito melhores do que os dos colonos. Recebiam também produtos de fora com preços inferiores ao restante da população. Contudo, os religiosos estenderam esse privilégio ao pagamento dos dízimos, e isso gerou uma série de conflitos com as autoridades metropolitanas. Sempre que a situação política local ou na Península Ibérica não estava muito favorável aos interesses dos inacianos, tal querela vinha à tona e gerava uma série de documentos de parte a parte tentando provar quem teria razão. O fato é que os jesuítas nunca aceitaram pagar os dízimos.

IHU On-Line – O que levou o Marquês de Pombal a promover a expulsão dos Jesuítas de Portugal e do Brasil?
Marcia Sueli Amantino – Pelo que se pode observar na documentação, é inegável o poderio fundiário da Companhia de Jesus na América portuguesa e mesmo fora dela. Numa sociedade onde a dignidade social era medida pela posse da terra e pelo número de cativos que se possuísse, não há como não identificar os inacianos como uma ordem extremamente poderosa que amealhava privilégios e, com estes, condições favoráveis aos seus intentos. Os colégios eram geradores de grandes somas em dinheiro e em produtos. Mercadorias circulavam na colônia e muitas eram exportadas para Europa, África e Ásia. Uns colégios eram mais poderosos que outros e alguns possuíam dívidas, mas a maioria conseguia gerar lucros que eram reinvestidos na produção, na compra de cativos, de mais terras, de ferramentas e, é claro, de objetos de culto, de decoração para as igrejas e de manutenção das aldeias indígenas.

A posição estável dos jesuítas frente ao poder régio começou a sofrer reveses à medida que se aproximava a segunda metade dos setecentos e teve como ponto decisivo a ordem de expulsão da companhia de Jesus de todo o reino. Percebe-se que o banimento dos inacianos foi o clímax de um processo de desgaste da Ordem que já vinha se arrastando há alguns anos. Na colônia, as principais queixas eram contra o controle que os padres exerciam sobre a mão de obra indígena e sobre as melhores terras, bem como o fato de eles não terem seus produtos taxados nas alfândegas. Na corte, dentre outras reclamações, preponderavam a interferência da cúpula dos jesuítas nos negócios do Estado e também a alegada riqueza não tributada.

A partir daí, a situação dos padres da Companhia, que já era bastante difícil junto a Carvalho e Melo , ficou insustentável. Violentas campanhas apontando os religiosos como traidores da coroa e desobedientes das vontades reais irromperam por todos os cantos. O ponto culminante deste processo de descrédito da ordem inaciana frente aos interesses da coroa foi a suposta tentativa de assassinato régio. Acusados de terem conspirado contra o rei, foram declarados inimigos e banidos de todo o reino e colônias.

IHU On-Line – Após a supressão, quem “herdou” as propriedades dos jesuítas? Em que se transformou o poderio econômico deles no Brasil após a supressão?
Marcia Sueli Amantino – Junto com a ordem de expulsão dos jesuítas vieram documentos ordenando que todos os bens que eles possuíam deveriam ser inventariados e sequestrados para o tesouro régio. Os bens deveriam ser leiloados em praça pública pelos melhores preços que conseguissem e os valores obtidos deveriam ser enviados para os cofres de Lisboa. Entretanto, as terras jesuíticas, pelo menos as que ficavam em torno da cidade do Rio de Janeiro, eram bastante grandes e isso dificultava a venda. Assim, decidiram que venderiam as terras divididas em parcelas/chácaras para os que já eram arrendatários dos jesuítas. Já as fazendas mais afastadas do núcleo urbano foram leiloadas em sua totalidade, algumas, inclusive, com seus escravos. Outras, como foi o caso da Fazenda de Santa Cruz, nunca foram leiloadas. Assim, pode-se dizer que muitas pessoas ficaram com partes das terras que haviam pertencido aos jesuítas. A saída deles significou uma redistribuição agrária impactante, principalmente na cidade do Rio de Janeiro.

Mbuyi Kabunda: Neopanafricanismo como alternativa ao neoliberalismo

Mbuyi Kabunda considera a ideologia neoliberal imposta aos governos africanos, segundo a qual se pode vender e comprar tudo, a nova forma de colonização do continente

Por: Andriolli Costa e Ricardo Machado / Tradução: André Langer

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A descolonialidade está para muito além das formalidades legais que tornam um país, teoricamente, livre. Nesse sentido, o professor Mbuyi Kabunda, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, sustenta que é preciso recuperar o Neopanafricanismo. “Nkrumah fundamentou seu projeto de unidade do continente ou dos Estados Unidos da África a partir do socialismo, instaurado em todos os países africanos como base do pan-africanismo ou da unidade econômica e política do continente”, explica Kabunda. “Dito com outras palavras, todo o programa de Nkrumah consistia na instauração do socialismo marxista ou científico em todos os países africanos. Era, segundo ele, a única condição de realização da unidade africana ou do pan-africanismo. Infelizmente, sofreu a hostilidade dos interesses imperialistas instalados no continente e dos líderes do socialismo africano aliados aos interesses ocidentais”, contextualiza.

O professor, entretanto, não defende o retorno a um marxismo totalitário, mas, sim, propõe a uma perspectiva de superação da divisão nacionalista das nações africanas. “O neopanafricanismo, assim como o projeto nkrumahista, é um enfoque maximalista e uma visão federalista da união africana”, sugere.

Mbuyi Kabunda, nascido na República Democrática do Congo, é doutor em Relações Internacionais pela Universidad Complutense, Madrid, Espanha. É professor do Instituto Internacional de Direitos Humanos de Estrasburgo e professor de Relaciones Internacionais e Estudos Africanos do mestrado da Universidad Autónoma de Madrid – UAM. É, também, diretor da revista África América Latina Cuadernos de Solidaridad para el Desarrollo y la Paz – Sodepaz e Diretor do Observatório de Estudos sobre a Realidade Social Africana da Universidad Autônoma de Madrid.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que consiste pensar o neopanafricanismo hoje?
Mbuyi Kabunda – Pensar o neopanafricanismo hoje consiste em encontrar uma alternativa para o neoliberalismo mediante a adoção de outro modelo de desenvolvimento coletivo que ponha no centro os interesses e as aspirações de povos africanos, ou o afrocentrismo ou a afrocentricidade, que consiste em fortalecer as capacidades de ação e atuação dos povos africanos a partir dos saberes e práticas endógenos.

IHU On-Line – De que modo estas propostas se aproximam e se afastam do pan-africanismo defendido por Kwame Nkrumah na década de 1950?
Mbuyi Kabunda – Há muitos aspectos comuns com o pan-africanismo nkrumahista: tomar o continente em sua totalidade (Estados Unidos da África) e sua organização e reestruturação sob a forma de uma federação ou confederação. Nkrumah fundamentou seu projeto de unidade do continente ou dos Estados Unidos da África a partir do socialismo, instaurado em todos os países africanos como base do pan-africanismo ou da unidade econômica e política do continente. Dito com outras palavras, todo o programa de Nkrumah consistia na instauração do socialismo marxista ou científico em todos os países africanos. Era, segundo ele, a única condição de realização da unidade africana ou do pan-africanismo. Infelizmente, sofreu a hostilidade dos interesses imperialistas instalados no continente e dos líderes do socialismo africano aliados aos interesses ocidentais. O neopanafricanismo, assim como o projeto nkrumahista, é um enfoque maximalista e uma visão federalista da união africana.

IHU On-Line – Quais são os fundamentos para a integração regional da África hoje?
Mbuyi Kabunda – São fundamentalmente econômicos: a organização do mundo em torno dos blocos econômicos e comerciais (União Europeia, Tratado Norte-Americano de Livre Comércio NAFTA [na sigla em inglês], Mercosul, Cooperação Econômica Ásia-Pacífico – APEC [na sigla em inglês], Associação das Nações do Sudeste Asiático – ASEAN, etc.); o PIB de todos os países africanos juntos, excluindo a África do Sul, é o equivalente ao PIB do México ou à metade do PIB da Grã-Bretanha. O que exclui qualquer possibilidade de desenvolvimento isolado, pois nenhum país africano tem a população ou os recursos suficientes para conseguir o desenvolvimento sozinho. O problema coloca-se nos termos de nos unirmos para sobreviver ou nos dividirmos para desaparecer.

IHU On-Line – A centralização de territórios africanos em governos únicos levou, às vezes, à dominação de diferentes etnias por grupos adversários. Como pensar em algo como os “Estados Unidos da África” levando em conta as individualidades de seus grupos componentes?
Mbuyi Kabunda – Em um mundo cheio de incertezas e desafios de toda índole, não há outra opção para os africanos senão superar suas individualidades e, particularmente, suas afinidades étnicas. Trata-se da unidade na diversidade, a unidade respeitosa das diversidades étnicas, partindo do princípio segundo o qual a uniformidade empobrece e a diversidade enriquece. Não há contradição, mas complementaridade. Além disso, não se deve demonizar as etnias ou as nacionalidades africanas que são favoráveis à unidade. São as manipulações dos dirigentes, por razões de poder político e econômico, que as convertem em integrismos ou “identidades assassinas”.

IHU On-Line – Que outras dificuldades estão relacionadas à integração africana?
Mbuyi Kabunda – As mais importantes são o apego às soberanias nacionais ou os nacionalismos exacerbados; a falta de complementaridade entre as economias africanas; privilegiar as relações verticais com as antigas metrópoles em detrimento das horizontais; a existência de várias moedas nacionais inconvertíveis entre si; a ausência ou escassez de infraestruturas físicas, de comunicação e produção ou de transportes entre os países africanos; o enfoque equivocado de integração, mimético, pelo mercado (livre-cambista); a falta de vontade política das classes governantes, etc.

IHU On-Line – No âmbito do agronegócio, devido às grandes extensões territoriais e terras pouco aproveitadas, a África é vista como uma nova fronteira agrícola. De que modo nos dias atuais isto mostra uma visão colonialista do continente?
Mbuyi Kabunda – Existe uma ameaça das terras africanas compradas pelas multinacionais e alguns governos do Norte e de outras regiões do mundo para produzir alimentos para as suas populações com um alto poder aquisitivo. Trata-se de terras étnicas, agora confiscadas pelos governos que as vendem para conseguir divisas, hipotecando o futuro no continente. É a consequência direta da ideologia neoliberal imposta aos governos africanos, segundo a qual se pode vender e comprar tudo. É uma nova forma de colonização do continente.

O problema da África é a fome, que pode ser resolvida mediante a autonomia e a soberania alimentar. Ou seja, mediante a produção de alimentos utilizando para tal efeito as terras africanas.

IHU On-Line – O que implica pensar em uma cooperação Sul-Sul e não Norte-Sul?
Mbuyi Kabunda – Para criar frentes comuns ou dinâmicas Sul-Sul nas negociações internacionais, promover os interesses e a solidariedade do Sul; conseguir uma nova ordem internacional mais equitativa; fomentar o regionalismo, as coalizões estratégicas, e promover a cooperação econômica, financeira e técnica entre os povos em desenvolvimento. A cooperação Sul-Sul não deve ser uma alternativa à cooperação Norte-Sul, mas complementar. A “cooperação a favor, e não contra”. Trata-se de somar, e não subtrair.

IHU On-Line – De que forma os dilemas do Sul global encontram eco uns com os outros?
Mbuyi Kabunda – Existe um desconhecimento total entre os povos e os movimentos sociais do Sul — latino-americanos, asiáticos e africanos — ou do Sul Global devido às políticas de exclusão de muitos governos do Sul e a serviço dos interesses neonacionalistas ou imperialistas. É preciso favorecer os contatos entre os povos indígenas, as universidades, os professores, os estudantes, os trabalhadores dos países africanos, asiáticos e latino-americanos…, para intercambiar suas experiências e promover seus interesses. A cooperação Sul-Sul não deve limitar-se aos Estados ou governos, mas estender-se também aos povos.

IHU On-Line – Deseja acrescentar mais alguma coisa?
Mbuyi Kabunda – O século XXI será africano. É o continente do futuro mediante uma prévia e tripla reestruturação: a interna (mediante a democratização econômica e social), a regional (mediante a integração regional popular ou a partir dos povos) e a externa, mediante a democratização das relações econômicas internacionais no sentido da justiça e da equidade. Pois, como manifestava Nelson Mandela , “a África necessita mais de justiça do que de ajuda”.

Germain Tshibambe: Em busca da vida. A África Central e o esforço protagonista do Sul

O cientista político africano analisa a produção do conhecimento entre os hemisférios e sugere a ampliação dos fluxos de trocas

Por Andriolli Costa e Ricardo Machado | Tradução: Isaque Gomes Correa
Colaborou: Fernanda Frizzo Bragato
Revista IHu On-Line 458

1250548675175_f“O tempo que vivemos é um momento de tristezas. A República da África Central, hoje, é o epicentro da guerra civil. A parte oriental da República Democrática do Congo ainda está sob o fogo da violência e de conflitos de baixa intensidade de todo o tipo. A instabilidade política tem um impacto negativo nas populações locais. Estas populações se encontram em situações destacadamente precarizadas”, descreve Germain Ngoie Tshibambe, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Diante de um cenário difícil, o professor e pesquisador Germain sustenta que todos os meios e espécies de fluxos dos que estão no exterior devem ser estimulados para que estas pessoas se tornem “agentes” dos próprios países. “O dinheiro feito pelos que migraram pode se tornar fonte para investimentos interessantes em seus países de origem. Isto dá lugar a um debate polêmico sobre as remessas de dinheiro. Há muitos migrantes do Sul Global com Ph.D. e todo o tipo de competência técnica e científica vivendo no Norte Global. Eles podem ser usados de forma eficiente para darem sustentação aos seus países de origem”, sugere.

Apesar de ter um posicionamento crítico com relação à produção intelectual do Norte Global, Germain foge de uma postura dicotômica. “Antes de tudo, em nível global a questão da migração foi levantada por pensadores americanos e ativistas dos direitos humanos. Os pensadores do Sul Global vêm depois e a eles foram dadas oportunidades de serem ouvidos não no Sul, mas no Norte, onde os debates são abertos e circulam de maneira intensiva”, destaca. “Há uma questão de geopolítica do conhecimento aqui. Existe uma divisão desigual da produção do conhecimento; ela começa no Norte, com o Sul Global estando na posição reativa. Isto faz surgir os limites do Sul Global. Não há parceiros financiadores no Sul Global tal como existe no Norte”, complementa.

Germain Ngoie Tshibambe é decano da Faculdade de Ciências Sociais, Políticas e da Administração na Universidade de Lubumbashi – Congo. Professor no Departamento de Relações Internacionais e Ciências Políticas – Universidade de Lubumbashi (UNILU) na Republica Democrática do Congo. Foi coordenador da pesquisa sobre movimentos de migração para/a partir da República Democrática do Congo, fundada pelo programa MacArthur em Mobilidade Humana com parceria do instituto internacional de migração, na Universidade de Oxford, por três anos.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que são as dinâmicas migratórias intercomunitárias na África Central?
Germain Ngoie Tshibambe – As dinâmicas da migração intercomunitária nesta região — África Central — apresentam dois aspectos. O primeiro diz respeito à orientação dos migrantes. O segundo trata das causas da migração. Nesta região, a orientação da migração dá preferência a uma distinção sutil entre países “privilegiados” de destino (ou países que recebem os migrantes) e os países emigrantes. Há países que são considerados interessantes e que atraem a migração. Estes são países ricos em fontes minerais e são campos para atividades informais. É o caso de Angola, Camarões, Gabão, Guiné Equatorial, Chade e República Democrática do Congo. Os outros países enviam levas de migrantes.

A África Central é forjada pela existência de comunidades econômicas sub-regionais com uma divisão linguística e colonial. Há a Comunidade Econômica e Monetária da África Central – CEMAC (que compreende seis países colonizados pela França), a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP e a Comunidade Econômica dos Países dos Grandes Lagos – CEPGL. Existe um fluxo migratório interior entre as pessoas que pertencem a cada uma destas comunidades. De qualquer forma, é válido dizer que há uma espécie de sutileza das coisas que acaba criando uma confusão na distinção entre quais países estão enviando e quais países estão recebendo migrantes.

O segundo aspecto relaciona-se com as causas da migração. Há razões históricas e contemporâneas. Entre as razões históricas podemos lembrar as profundas relações entre as pessoas pertencentes aos mesmos grupos étnicos que vieram a se separar com as fronteiras coloniais. Para além desta questão das fronteiras coloniais através dos Estados pós-coloniais, as pessoas nesta região eram ativas em migrar. Para facilitar este fenômeno, os Estados pós-coloniais forjaram políticas específicas para lidar com este “transnacionalismo comunitário (ou étnico)”.

Já as razões contemporâneas são complexas. Destaco os fatores econômicos que levam as pessoas a se movimentarem de um país para outro não para se assentarem, mas para comprar produtos em um lugar e vendê-los em outro, produzindo um complexo continuum dentro do qual sujeitos, ideias e coisas circulam. Devemos também observar o viés do conflito que há nesta região. A belicosidade e suas consequências induzem à migração.

IHU On-Line – Quais são as particularidades dos movimentos migratórios intercomunitários na África Central? Como se diferenciam das imigrações do Sul Global para outras regiões do planeta?
Germain Ngoie Tshibambe – Não tenho certeza de que podemos entrever as particularidades destes movimentos migratórios na região em questão. Em vez disso, podemos compreender o que acontece e por que eles ocorrem. Não há diferença alguma, ao menos que tentemos revelar as diferenças como se existissem alguns lugares e algumas realidades que fossem mesmo diferentes. Nihil novi sub sole [não há nada de novo sob o sol], eis um provérbio latino.

Duas coisas válidas de nota: o desejo de fazer negócios no contexto da informalidade desmedida explica a migração. Em outros lugares também encontramos este fator como determinante. Hoje, os chineses estão migrando e o que estão fazendo na migração relaciona-se com as oportunidades comerciais. Em segundo lugar, o fator impulsionador é a guerra e a violência de todas as formas (violência e estupro de meninas e mulheres, tortura, saques…). Noutras partes do Sul Global encontramos conflitos e violência; há um movimento consequente de migração. Aliás, este segundo aspecto pode ser considerado uma particularidade da África Central, nesta conjuntura de Estado falido e guerras que despedaçam este lugar.

IHU On-Line – Que relações há entre os conceitos de imigração e desenvolvimento?
Germain Ngoie Tshibambe – Esta relação entre os conceitos de imigração e desenvolvimento foi provocada a partir de uma consideração normativa ao mesmo tempo em que se lidava com a questão da migração no período pós-guerra fria. Depois que a comunidade internacional se tornou incapaz de suprimir a migração, digamos os fluxos migratórios, um novo paradigma desdobrou alguns pensamentos sobre a forma de se transformar a migração em um lugar capaz de levar ao desenvolvimento. Por exemplo, nas décadas de 1960 e 1970, havia o conceito de “brain drain”, quer dizer, uma fuga de cérebros. Esta mudança foi levada em consideração, e os Estados se engajaram em diálogos no intuito de estabelecer políticas que poderiam mudar a perspectiva pessimista de migração para uma perspectiva otimista no que diz respeito ao desafio do desenvolvimento. Portanto, uma nova governança veio a ser posta em movimento de forma a ajudar os Estados e governos a implementarem políticas que poderiam fazer uso de todas as oportunidades para enquadrar as pessoas na migração em seus países de origem. Esta visão voluntarista ainda precisa de mais envolvimento e imaginação por parte dos Estados e dos migrantes.

IHU On-Line – A propósito, que tipo de desenvolvimento está relacionado aos movimentos migratórios? Quais são os impactos da imigração no desenvolvimento?
Germain Ngoie Tshibambe – Uma questão ampla está relacionada na definição do desenvolvimento na significação geral. Como tal, todas as oportunidades, todos os meios e qualquer espécie de fluxo são necessários, e os migrantes que estão no exterior devem se tornar novos “agentes” com relação a seus países. Por exemplo, o dinheiro feito pelos que migraram pode se tornar fonte para investimentos interessantes em seus países de origem. Isto dá lugar a um debate polêmico sobre as remessas de dinheiro. Há muitos migrantes do Sul Global com Ph.D. e todo o tipo de competência técnica e científica vivendo no Norte Global. Eles podem ser usados de forma eficiente para darem sustentação aos seus países de origem. Há histórias de sucesso de alguns países para os quais as migrações ajudaram os países de origem a terem uma oportunidade e um impulso para o desenvolvimento. Tudo isso, aliás, é passível de debate.

???????????????????????????????IHU On-Line – De que ordem são os fluxos de refugiados e pessoas em deslocamento na África Central? Como o atual cenário político da região gera impactos nas populações locais?
Germain Ngoie Tshibambe – Segundo os dados disponíveis, a África Central registra mais refugiados e pessoas deslocadas do que qualquer outra parte do mundo. Os refugiados da África Central representam 78% do número global de pessoas nesta situação. Dois países estão entre os que mais enviam refugiados: a República Democrática do Congo e a República da África Central. O tempo que vivemos é um momento de tristezas. A República da África Central, hoje, é o epicentro da guerra civil. A parte oriental da República Democrática do Congo ainda está sob o fogo da violência e de conflitos de baixa intensidade de todo o tipo. A instabilidade política tem um impacto negativo nas populações locais. Estas populações se encontram em situações destacadamente precarizadas. É alto o nível da pobreza global. Sem guerras e violência, estas populações estão se desfazendo devido à pobreza e à fome. Com guerras, a situação se torna pior.

IHU On-Line – Quais são os desafios à livre circulação de pessoas na Comunidade Econômica dos Estados da África Central – CEEAC?
Germain Ngoie Tshibambe – Comecemos dizendo que a CEEAC, em sua carta constitutiva, afirma a livre circulação dos indivíduos como o seu princípio fundador. No nível normativo, muitas normas e decisões foram adotadas desde 1983. Atualmente, em aeroportos como os de Kinshasa [capital federal da República Democrática do Congo] e Libreville [capital do Gabão], vamos encontrar nos locais de chegada guichês para cidadãos dos Estados membros.

Os desafios, porém, ficam na forma como os governos em cada país membro administram as relações com as pessoas — sejam elas cidadãs do país ou estrangeiras. Há muitos gargalos. O aparato estatal parece se comportar como se estivesse contra a livre circulação das pessoas. Os dois Congos são países muito próximos. Mas sem um debate claro, congoleses da República Democrática do Congo são expulsos do Congo-Brazzaville com um índice muito alto de mortes e estupros. Sabe-se que, em estradas internacionais que ligam diferentes países, há barreiras policiais para o controle de migrantes. Estas blitze são locais para subornos e assédios das pessoas em trânsito.

O que se precisa é de vontade política. É uma opção útil envolver todos os agentes encarregados pela imigração e de segurança, além dos serviços de polícia, para realizar treinamento e para disseminar as normas e regras da livre movimentação das pessoas. Estas pessoas querem se movimentar livremente por motivos de negócio e para melhorarem suas vidas. A histeria pela segurança reivindicada por alguns Estados é apenas pretexto.

IHU On-Line – Como é possível tornar viável uma governança que valorize a livre circulação de pessoas?
Germain Ngoie Tshibambe – Uma governança viável que valoriza a livre circulação de pessoas é possível. O comprometimento dos países membros da ECCAS por uma tal política é o primeiro passo mostrando uma forma alternativa de se fazer as coisas na região. A renovação dos agentes da administração pública — aqui também há um problema de rejuvenescimento dos agentes por pessoas jovens, bem educadas, com formação universitária – é uma pista para fazer desta governança uma realidade e não um mito. Hoje, a comunidade internacional tem um papel na realização das mudanças dentro dos Estados nesta região. A ideia de uma governança viável dentro da ECCAS foi sustentada por financiamentos da União Europeia e assim continuará. Para a União Europeia vale a pena continuar com tais pressões benignas para a implementação desta governança.

IHU On-Line – Qual a contribuição do pensamento e das racionalidades produzidas no Sul Global para a questão das migrações em nível mundial? Quais são os limites e as possibilidades?
Germain Ngoie Tshibambe – Antes de tudo, em nível global a questão da migração foi levantada por pensadores americanos e ativistas dos direitos humanos. Os pensadores do Sul Global vêm depois e a eles foram dadas oportunidades de serem ouvidos não no Sul, mas no Norte, onde os debates são abertos e circulam de maneira intensiva. Cada vez mais, há pensamento e racionalidades produzidos no Sul Global, os quais acrescentam uma nova visão, dão uma nova luz e reavaliam o discurso predominante sobre o assunto. Há uma questão de geopolítica do conhecimento aqui. Existe uma divisão desigual da produção do conhecimento; ela começa no Norte, com o Sul Global estando na posição reativa. Isto faz surgir os limites do Sul Global. Não há parceiros financiadores no Sul Global tal como existe no Norte. A Fundação MacArthur, sediada nos EUA, financiou e apoiou pesquisas sobre a migração; o contrato foi realizado pelo Instituto de Migração Internacional, da Universidade de Oxford. Grande parte das pesquisas foi feita na África. Eles pediram aos africanos para pensarem sobre as perspectivas africanas sobre migração e mobilidade. Pensar sobre migração com fundos fornecidos pela vontade e atenção do Big Brother explica os limites e possibilidades de um tal pensamento.

O domínio da migração e desenvolvimento é muito atraente. Muitas oportunidades de pesquisa se abrem nos meios científicos; mas todos estes impulsos e interesse pela migração se relacionam com o desejo do Norte (e com os financiamentos dele) em compreender e controlar a questão após o pesadelo do 11 de setembro nos Estados Unidos.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Germain Ngoie Tshibambe – O futuro é complexo. Existe um desafio no domínio da produção de conhecimento. Vale a pena ouvir a voz do Sul Global. Vale a pena apoiar pesquisas não só com palavras, mas também com meios, com fundos. Muitos pensadores do Sul Global estão em silêncio e suas vozes estão inaudíveis devido à falta de verbas e espaços públicos para falarem e serem ouvidos.